terça-feira, 9 de julho de 2019

ARTIGO - Movimentos Históricos (RMR)


MOVIMENTOS HISTÓRICOS
Rui Martinho Rodrigues*



Movimentos históricos resultam de complexas constelações de fatores. Crescem e dominam. Contam com a articulada dos adeptos, que conspiram para favorecê-los. Os movimentos estéticos como o classicismo, o romantismo, o realismo foram ondas amparadas pela ação organizada de artistas, críticos, professores e intelectuais em geral.

O favorecimento dos movimentos artísticos e políticos consiste em selecionar publicações, professores e obras com base no paradigma do movimento dominante. A seletividade se faz por falta de visão alternativa e como tática para impor um entendimento ou um emblema totêmico de “tribos” que podem ser apenas cooperativas de poder entre os grupos encastelados nas universidades, indústria de entretenimento, editoras, meios de comunicação e igrejas.

Um movimento convertido em paradigma dominante torna-se ortodoxia. Os raros dissidentes são vistos como ignorantes, desinformados ou desatualizados. Na política são demonizados. O dominante é apresentado como novidade evolutiva, superior.

Temos avanços enormes na ciência, na técnica e nas instituições jurídico-políticas, mas não na condição humana, reconhecem Jaques Le Goff (1924 – 2014) e Sérgio Paulo Rouanet (1934 – vivo). “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: de modo que nada há de novo debaixo do sol” (Eclesiastes, 1;9). Transformação radical dos fenômenos sociais é engano. Nada começa do zero. As experiências revolucionárias falharam, reconhecem os revolucionários meio desiludidos, como Herbert Marcuse (1898 – 1979), na obra Eros e Civilização.

A busca da terra sem males (yvy marã e’y ou yby marã e’yma), onde não haveria fome, guerras nem doenças, era empreendida pelos índios. Na mitologia grega a deusa Bem-Aventurança, mulher atraente e sedutora, prometia colheita sem plantio, além de cama e estradas macias.

Mas o Estado do Bem-Estar promete o mesmo e foi recebido como novidade. Raoul Girardet (1917 – 2013), na obra Mitos e Mitologias Políticas, desnuda a natureza mítica das grandes narrativas. O domínio do pensamento político que promete a terra sem males, colher sem plantar, estrada e cama macias, levou a um monopartidarismo discreto. Todos os programas políticos prometiam bem-estar, igualdade e emancipação. As constituições posteriores à de Weimar se comprometem com tudo isso. Incorporaram matéria constitucional imprópria e normas programáticas em constituições rígidas. A reserva do possível foi esquecida. Veio a pandemia da crise fiscal. Reforma de previdência e recuos do Estado do Bem-Estar se impuseram na rica Europa. A deusa Virtude (Mentirosa) perdeu prestígio. Mas quem pode se opor ao “bem” que ela proclama? Os intelectuais aderiram a ela.

Os seus críticos em geral não passaram pelas universidades ou o fizeram em áreas técnicas. Não contribuem muito. Só a desmoralização pela corrupção e a degradação dos costumes abalou a deusa sedutora. Ela apresenta diferença como desigualdade, propõe igualdade de resultados, omite o desafio da produtividade, da formação de poupança para investir enquanto deblatera contra o pagamento de juros e defende o descontrole de gastos. Derrotá-la no debate intelectual é fácil. Mas o povo não entende. Só a desmoralização pode vencê-la, como está acontecendo em várias partes do mundo. O embate é grosseiro. Mas a perda do recato foi estimulada pelos “virtuosos”, para quem toda contenção era opressiva. Dará certo?




COMENTÁRIO

A sociedade – lato ou stricto sensu – considerada como o microcosmo da província ou o universo planetário – pode ser descrita como um numeroso povo fixado em uma extensa planície, onde produz os bens essenciais à sobrevivência, que são abrigo e alimento, e aplica a ciência para a obtenção dos demais predicados dos saberes, além dos confortos extras que o engenho humano proporciona  industrial e tecnológico. 

Esse povo que trabalha, produz e é tributado compõe os três setores da economia  o primário, o secundário e o terciário  e as categorias profissionais: os agricultores, os empresários empregadores, os operários empregados, os executivos, os professores, os cientistas, os técnicos, os profissionais liberais. 

Para funcionar de maneira solidária, como a vida gregária exige, essa sociedade distingue uma parcela de seus membros para aplicar o intelecto no interesse comum, criando e aplicando as leis, vigiando as condutas e contendo os excessos pessoais, limitando a liberdade individual aos parâmetros dos atributos coletivos, e administrando o patrimônio público necessário.

Esse estrato social que se situa no planalto não produz bens da vida, não gera riquezas, mas é mantido pela força de trabalho dos que vivem na planície, e equaciona os recursos tributados sobre o que estes produzem, para garantir saúde básica, segurança pública, educação das crianças – além de sistemas viários em geral, mananciais hídricos, luz e força, meios de saneamento – e assistência social aos desvalidos. 

Essas pessoas, que nessa alegoria situamos no planalto, são os funcionários públicos em geral  civis e fardados, eleitos e concursados, governantes e subordinados, autoridades e autorizados  meros síndicos do grande edifício social, que têm o dever e a oportunidade de administrar, de forma boa ou ótima, os recursos disponibilizados pelo trabalho dos que produzem na planície.

Por suposto, essa casta decisória e não produtora tem ensejo de fazer o "sermão da montanha" com fins eleitorais, mas não pode prometer ao povo uma Canaã de leite e mel. Na verdade, não tem o poder de multiplicar pães e peixes, nem de garantir pleno bem-estar social para todos – aos que são aplicados e aos que não; aos que são operosos e aos indolentes; aos que têm melhor sorte e aos que não a têm; aos que são meritórios e aos que vacilam. Assim é a lei da vida. O resto é estelionato político ou quimera ideológica.  

Reginaldo Vasconcelos


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