terça-feira, 25 de setembro de 2018

CRÔNICA - Réquiem Urbanístico (RV)


RÉQUIEM URBANÍSTICO
Reginaldo Vasconcelos*


Corriam os anos setenta em seus albores. Mil novecentos e setenta e um, precisamente.

Todos eram vivos e jovens. Menos o Bebeto, o tio mais novo, que por volta dos trinta iria morrer de repente no réveillon daquele ano. Com ele eu encetara o projeto de instalar entre os muros daquele terreno na Av. Rui Barbosa, sob seus cajueiros e mangueiras, uma escola de adestramento de cães, atividade que eu e ele dominávamos, e que seria pioneira no Estado.

Na principal música de carnaval que embalava o período Sérgio Sampaio falava de um melancólico pierrô desapaixonado, perseguido pelas patrulhas ideológicas culturais, por não se ter engajado na luta da esquerda contra o regime militar. “Há quem diga que eu não sei de nada / que eu não sou de nada / que eu fugi da briga / que morri de medo quando o pau quebrou...”. A vida pela frente, eu já sabia, seria uma corrida de obstáculos, que não me intimidava. “Eu quero é botar / Meu bloco na rua / Brincar / Botar pra gemer. 

Mas dos rádios e fonolas mais comportados se ouvia o disco anual de um catolicíssimo Roberto, que chamava para si a atenção de Jesus Cristo, insistindo no refrão “eu estou aqui!”. O tio que ia morrer comprara o LP naquele natal para presentear alguém na família, e logo em seguida foi chamado para o Éden.

Eu estava aí meio menino nesta calçada, esperando um ônibus e projetando a ideia de adestrar cães, que não se concretizou porque o velho ranzinza dono do espaço resistia em cedê-lo para a exótica atividade, respondendo aos meus apelos que “de cachorrada andava cheio”. E as gestões não insistiram mais, e o plano não prosperou, porque o sócio no negócio desertou para o infinito.

Corte no tempo, sete anos depois, o empresário Bosco Coelho de repente transforma esse bosque urbano de meio quarteirão na mais agradável casa de pasto da cidade, a churrascaria Parque Recreio, com o seu pequeno zoológico, um formigueiro de garçons, e a melhor carne zebu do universo, assada ao sal grosso, no espeto, sobre a brasa.



Anos à frente eu a prestigiaria com frequência – com os amigos, com as namoradas, com a família, com o grupo de moças que eu fotografara para a minha página no jornal, marcando com um diagrama de lembranças específicas cada praça a céu aberto, cada palhoça, cada mesa do gigante restaurante.








Muitos mais anos à frente, já sem os bichos, que o Ibama confiscou – mas ainda com muito glamour, já sob a administração do ex-garçom que o arrendou e enriqueceu, fizemos ali as primeiras reuniões para a fundação da ACLJ, preparatórias para a instalação da confraria. E mesmo depois, era ali o nosso laboratório de intenções.







Agora a churrascaria fechou, e o terreno voltou ao seu estado original. Suas árvores estão novamente ameaçadas de extermínio, e tombarão juntamente com tantas memórias vivas que construímos embaixo delas. 



E a lua verá desconfiada / A Loura do Sol com mais um supermercado” – parafraseando o compositor Ednardo, na canção em que ele chora as inexoráveis metamorfoses urbanas, que trucidam o passado da cidade e soterram as melhores lembranças de seu povo.   




















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