DESAMPARO
Alana Girão de Alencar*
“Alguma coisa está fora da ordem”1
e, indiscutivelmente, a nossa “piscina
está cheia de ratos”2. E, lamento, do que vejo: uma histeria desenfreada a
apontar discursos perfurantes, como se houvesse a possibilidade de instaurar a
culpa do caos na própria ausência, projetando soluções partidárias como se a
estrutura perversa obedecesse ao regime democrático. Sim, Cazuza, nos resta “pedir piedade... pois há um incêndio sob a
chuva rala, somos iguais em desgraça”3.
Sigo lendo e relendo matérias críticas, soterradas de desabafos, sobre
políticos, ministros, juízes, denúncias, operações, golpes, injustiças e tudo o
quanto importa... E, de maneira não
menos surpreendente, sempre me deparo com a conclusão lógica de ficar cara a
cara com a proporção desmedida do nosso desamparo.
Rasga-se a Constituição, burlam-se deveres, abusa-se de direitos,
corrompe-se a esperança. Nosso circo de miséria, agora, dilata a olhos nus, nos
acorrenta... Põe-nos aos sobressaltos de
duvidar do futuro. Raul Seixas já havia
alertado “que
sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados”4. Só não previu por quanto tempo prolongar-se-ia esse “hoje em dia” em que “dá no mesmo ser
direito que traidor. Tudo é igual, nada é melhor”5.
Num desses textos, como de espanto, li que “Marielle é um cadáver fabricado”6, e de impulso indaguei sobre as armadilhas construídas pelo arcabouço das palavras. Atirar fábulas em histórias reais, sofridas, de minorias que gritam queixas de uma sociedade adoecida, me parece despencar de qualquer bom-senso rumo ao desrespeito pungente.
Marielle, antes de ser cadáver, era gente, voz... E, ao passo que os
passos seguem, vozes se calam, medos florescem, cordeiros endiabrados assumem o
controle anárquico. Tudo às claras, sem vergonha na cara, sem pudor... Sádicos
gozam como se houvesse triunfo. Receio ter chegado ao tempo em que a migalha tida
como
luxo serve de teia
ao compartilhamento da dor dos humilhados.
Não é à toa que imagens de Oscar Maroni exibindo sua natureza cruel voltam a macerar meus pensamentos. Um libertino vulgar angariando mérito por patentear a falência da lei. Ele não estava só. Havia para quem direcionar o seu olhar oco. Havia para quem responder todo esse descontrole político que enfrentamos. Estamos embarcados no Metrô Linha 743 sem que tenhamos nos dado conta. Sem que saibamos em que parada descer.
E assim, em Pessoa, sigo questionando: “As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções – essas, por que não evitá-las?”
NOTA DO EDITOR
A psicanalista e poetisa
Alana Girão de Alencar, das mais novas e mais jovens aquisições da ACLJ,
estreia no Blog com um texto analítico do dramático momento nacional.
Para
tanto, a autora faz uma interessante fusão da ciência que domina com a poética que
exercita, lançando mão de citações contemporâneas de cunho filosófico, que vão
de Cazuza a Fernando Pessoa, passando por Caetano Veloso e Raul Seixas. Que seja bem-vinda e que seja constante.
Como o artigo veio inominado, atribuímos-lhe como título uma palavra do texto que bem sintetiza o
tema manejado.
Não obstante traçados de
forma escorreita, e dotados de estética estilística, a Editoria se permite realizar
o copidesque necessário aos textos selecionados, de modo a que se compadeçam da forma padrão de seu Manual de Redação Profissional.
COMENTÁRIOS
A frase de Fernando Pessoa com que Alana arremata
o seu artigo, excerto do livro “O Banqueiro Anarquista”, de 1922,
encerra todo o drama da desigualdade social, bem como a inquietação ideológica
que dele deflui e que vem angustiando e dividindo a humanidade.
A Natureza é injusta, admite o poeta, na
conclusão agnóstica que soaria aos místicos como dizer que Deus é iníquo. Ilustra com perfeição a assertiva filosófica examinada o comentário revoltado que ouvi de uma jovem graciosa certa vez, ante a imagem blasé
de outra, muito mais bela: “Eu acho isso
tão injusto!”.
Pessoa indaga – e Alana reverbera a indagação – sobre como poderia a comunidade universal evitar que um nasça belo e o outro
feio, seja um são e o outro débil, um astuto e o outro néscio, e, pior ainda,
que este último, por vezes, evolua socialmente e o outro não, embora a lógica
indicando o oposto – tudo à matroca do binômio
sorte/mérito.
Ora, a concepção da existência de Deus se
funda exatamente no entendimento de que seja Ele o equalizador moral das condições
materiais díspares que a Natureza impõe a todos, que são de fato inescapáveis.
Os devotos esperam ser possível contornar
espiritualmente as diferenças naturais por meio da fé, do amor universal e da
Justiça Divina – quem sabe no sentido de que a moça menos dotada de encantos possa
prosperar por méritos próprios mais que a outra, na sua vida afetiva e social.
Incréus por princípio, portanto infensos a
essa solução fideísta e hipotética – mas, aferrados ao desiderato de alcançar a
equidade material humanitária – os socialistas erigem métodos políticos que
pretensamente possam promover a igualdade social indistinta e distribuir
felicidade.
Pergunta-se: Existem essas fórmulas mágicas
com o condão de contornar as iniquidades naturais, ou os desígnios divinos,
para além do determinismo da sorte de cada qual, e de sua inata capacidade de
se superar e evoluir pessoalmente, se destacando ainda mais? Somo-me a Pessoa e
a Alana nessa dúvida profunda.
Reginaldo
Vasconcelos
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Alana, com fina sensibilidade e uma mente que
não se queda aos “pre” conceitos, aos rompantes de uma sociedade, que em meio
as alienações, insensatez, inverdades e fraudes leva seu povo a se sentir
perdido, exara, declara de forma poética e filosófica sua inquietude. Amei!
Simplesmente, perfeito!
Cláudia Nadir
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Texto maravilhoso! Que apanhado de música,
crítica, grandes nomes e link de atualidade...
Suelen Girão
Alana, com fina sensibilidade e uma mente que não se queda aos “pre” conceitos, aos rompantes de uma sociedade, que em meio as alienações, insensatez, inverdades e fraudes leva seu povo a se sentir perdido, exara, declara de forma poética e filosófica sua inquietude. Amei! Simplesmente, perfeito! CNAMB 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirTexto maravilhoso! Que apanhado de música, crítica, grandes nomes e link de atualidade...
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns pela sua brilhante e psicanalítica leitura do nosso momento que exige de nós essa sua visão para não entrarmos nessa loucura que nos arrasta. Prenúncio de novos tempos de re-leitura de nós mesmos.
ResponderExcluirÉ o espelho da sociedade em que vivemos, da era em que vivemos: a da extrema hipocrisia.
ResponderExcluirE justamente nessas épocas que grita mais alta a voz da arte. E se faz necessária a existência de artistas para manter vivos o pensamento, a lucidez e a liberdade.