Sobre o tempo,
os gênios e os
desenhos das traças.
Geraldo
Jesuíno*
Eis
que me deparo a percorrer sinuosos bordados, às margens de algumas folhas de
papel, criados pelo trabalho incansável e paciente das traças.
Em
outros casos estaria a lastimar a ação impiedosa de tais insetos ante a perda
da integridade de algum documento de reconhecida valia, mas não aqui.
Neste
caso, expressa e deliberadamente, desapego-me da posse e da mágoa e debruço-me,
ao amparo da minha coragem, a urdir, como em linguagem silenciosa que apenas a
mim fosse permitido ouvir, outros pensamentos, outros significados.
Trato
aqui dos desenhos criados pelos perseverantes artrópodes nas margens das laudas
que compõem um repertório de afetos, disfarçado em livro de anotação de
presenças do Mini Museu Firmeza, apostos como registros na última parte deste Hoje
e o tempo passado e Um encontro com as lembranças, de Estrigas. Neles vejo o tempo. Não um tempo cruel e
implacável, mas aquele, sereno e necessário ao engendramento da história, à
acumulação dos feitos e à acomodação das memórias.
Vejo
a força da persistência, da dedicação e da desvelada determinação em resistir,
mesmo em restantes fragmentos, a serem buscados e escandidos, registrados e
impressos, em minúcias, para servirem de alimento a futuras fomes de saber e,
também, a outras traças – quem sabe – a causar naqueles, perversos prejuízos.
Dizem-me
tais interferências, da paz, da quietude, do aconchego e da benquerença
cravados e estampados nas árvores e flores, nos tetos e nas paredes, nos
sorrisos e nos semblantes, e até no tractraquear das rodas de trem sobre os
trilhos e dormente, já entes da casa, seladas como legados permanentes e
exuberantes da chácara dos Fimeza e dos seus habitantes.
Garimpando
vestígios, por entre os desenhos dos insetos, vejo o exercício do retorno às
lembranças lavradas – mas nem sempre legíveis – nas, tal e qual as bordas do
papel, sinuosas pistas da memória.
Observo
ainda a consciente manutenção de existências moldadas, exclusiva e
deliberadamente, sobre a arte que exercem, intencionalmente ou não. Isto
porque, ao olho do leitor atento e bem treinado nos domínios da linguagem da
arte, esta pode, sem sacrifícios de conceitos, ser constatada no rendilhado
aleatório do recorte executado pelas traças à bodas das folhas de papel. A elas
– as traças – no entanto, talvez não importe chegar a tal estado estético que,
ao defender a manutenção de sua curta existência, terminam, indeliberadamente
por promover.
Diferente
dos pequenos devoradores de papel, o autor desta obra, artista de escol e
pesquisador cioso e severo, a quem tenho orgulho de chamar de amigo, ao lado de
sua Nice musa companheira, faz arte de moto próprio, promove-a deliberadamente
por escolha e paixão, quando empunha seus instrumentos, e dá asas à sua
imaginação e criatividade revelando a magia das formas, das cores e das
palavras, ou apenas a faz, sem nenhum esforço ou proposição deliberada,
simplesmente sendo o Estrigas que é.
Ainda
em sinuoso raciocínio segui Estrigas em cada página desta obra e o constatei
como o que retorna, sem pressa e sem temor, às nervuras do tempo, lá cuidando
de recolorir e reavivar os rascunhos quase desbotados das suas lembranças mais
caras. Vejo-o pintar em tons pastel, com suas usuais competência e paixão, sua
paciente e disciplinada trajetória de cidadão, pensador e artista. Vejo-o quase
zen ao escolher a maturidade como opção de postura para a sua interpretação dos
valores do tempo. Vejo-o um crítico/historiador que não se rebela em atitudes
dramáticas, mas também não lega ao somenos o seu papel de observador, que
mantém atento, das sinuosas venturas e desventuras da arte e da cultura,
mormente aquelas da cidade que abraçou.
Vejo
a mim, por derradeiro, agradecido por ter aprendido, mediante olhos sábios, a
perceber o tempo, as traças e os seus feitos para entender um pouco mais sobre
esse exemplar de gênio que caminhou sempre, e apenas, sobre a urdidura da sua
coerência.
(*)
Texto publicado como posfácio no último livro do pintor, escritor e critico de
arte Nilo de Brito Firmeza – ESTRIGAS (Hoje
e o tempo passado/ Um encontro com as lembranças, Fortaleza, SESC, 2014).
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