PALAVRAS SÃO NAVALHAS
Reginaldo Vasconcelos*
Nos
anos 70 ainda vivíamos no Brasil a mais tacanha mentalidade pública em relação
aos mais velhos, que somente por especial eufemismo, de rara aplicação, eram
tratados de “idosos”. Foi quando me causou estranheza constatar a deferência
que os norte-americanos já tinham para com as pessoas de mais idade, a que
chamam “seniors citizens”.
Interessante
notar que esse antigo vezo brasileiro de desprezar os velhos tinha origem nas
nossas raízes europeias, que mesmo na sua tradição oral, observada nas fábulas
infantis, as pessoas más, os feiticeiros, as bruxas, as madrastas, o patrão
perverso, o avarento, são sempre representados como seres macróbios e
caquéticos.
Para
os africanos e ameríndios, que somaram suas culturas à dos colonizadores
portugueses, os mais antigos eram respeitados como os detentores da sabedoria
filosófica e da mais longa experiência prática que suas tribos dominavam,
artigos imateriais considerados preciosos.
Todavia,
parece ter prevalecido entre nós a atitude discriminatória da Ibéria. Inclusive
no nosso meio rural, em que os velhos eram tratados como trastes, já que não
podiam mais trabalhar e nem tinham vigor físico para agir com energia. Seu
destino era o “fundo das redes”, como se dizia no Nordeste, com grande carga de
desprezo.
Na
África e nas Américas antigas os velhos eram os caciques e pajés, as parteiras
e curandeiras, as pitonisas e os sacerdotes, e em muitos casos componentes de
conselhos de idosos, aos quais eram submetidas todas as questões mais cruciais
de suas comunidades – como, aliás, também faziam os gregos antigos, na origem
do que hoje se conhece como “senado”, formado por “senadores” (do latim senex = velho).
Aliás,
as comunidades indígenas e negras atuais ainda conservam essa reverência
especial aos idosos em todo o mundo – haja vista o destaque que se dá às “velhas
guardas” das escolas de samba cariocas, o que se repete entre os músicos de jaz
americanos e entre grupos musicais caribenhos, em que a senectude conta pontos
positivos.
Mas
a modernidade generalizou por todo o Planeta o conceito americano especial dos veneráveis
seniors sitizens, criando no Brasil a
reverente expressão “Terceira Idade”, e ainda a mais carinhosa forma “Melhor
Idade”, tudo culminando com a promulgação do chamado Estatuto do Idoso,
regulamentando artigos da Constituição Cidadã, norma jurídica protetiva à
classe dos sexagenários em diante.
A
partir de então as pessoas de mais idade passaram a ter jus aos mais amplos
privilégios, no sentido de que se lhes garantam cuidados e regalias, que vão desde
vagas especiais de estacionamento, precedência nas filas, até maior celeridade
em suas ações judiciais. E, o mais importante, as instituições devem prestar
essas atenções singulares aos idosos sem lhes causar constrangimentos, sem lhes
demonstrar má-vontade, sem dar foros de favor indevido a esses direitos, que
são legítimos e legais.
Malgrado,
cidadão de idade denuncia ao Blog que foi ao Laboratório Emílio Ribas e recebeu
uma senha para atendimento, com a inscrição “preferencial”, conforme impõe o Estatuto
do Idoso – mas notou que nas senhas comuns destinadas aos mais jovens o termo
utilizado era “normal”. Ora, o antônimo de “normal” é “anormal”, e, como diz o artista
sônico cearense Belchior, em letra de música, “palavras são navalhas”.
O
idoso em questão sentiu-se moralmente discriminado quando percebeu que, perante
os membros das novas gerações ali presentes, sua condição etária estava sendo estigmatizada
pela “anormalidade”, palavra que, como se sabe, adquiriu semântica pesada e
conotação pejorativa. Faz todo o sentido, embora isso possa parecer um capricho
banal, pois somente quem pode avaliar o dano moral é quem o sofre.
A
propósito, lembro bem que no início da vigência do Estatuto do Idoso os
gerentes do extinto Banco do Estado do Ceará designavam o funcionário mais
habilidoso de cada agência para avisar aos clientes de aparência madura que eles
tinham direito a uma fila especial. Se isso não fosse feito com muito tato,
alguns destes regiam mal, imaginando lhe estivessem considerando fisicamente inferiores.
Enfim,
tendo em vista que uma academia literária é majoritariamente composta por
juveníssimos anciãos, todos especialistas em palavras, e que uma academia de
jornalistas prima pela melhor difusão de informações, nos solidarizamos com o
denunciante, e nos comprometemos a provocar a nossa Decúria Diretiva para que expeça
ofício à empresa em questão, apelando para que substitua, nas senhas não
preferenciais, a palavra “normal” pelo seu sinônimo “comum”.
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