A CULTURA DO “NÃO”
Arnaldo Santos*
A
função pública derivada do poder conferido àqueles que o exercem, seja esse
delegado diretamente pelo povo, através do voto, ou por aqueles nomeados pelos
eleitos para os vários cargos nas estruturas dos governos em seus três níveis,
ou ainda por aqueles que ingressam através de concursos para as várias
carreiras de Estado, sofreu nos últimos tempos profundas alterações, e até inversão do seu significado.
A
postura adotada por uma grande parcela dos agentes públicos, pelo desvio deliberado
de função, ou por simples desídia, ou ainda pela incapacidade de compreender a
nobreza e a responsabilidade da função que exerce, foi de tal ordem significada
que vimos erodir o verdadeiro sentido do "servir", que significa
"trabalhar em favor de alguém, de uma instituição, ou de uma causa".
Hoje,
o que predomina no setor público (com as exceções que confirmam a regra),
é a cultura do “não”. Do “negar”, do não “realizar”, do “não atender”, em
substituição ao servir. Podemos observar quão grave e nefasto é o resultado do
exercício desse poder de dizer “não”, nas mais comezinhas ações, desde os que
faltam aos plantões nos serviços essenciais, como o professor que não dá aula,
o médico que falta ao plantão, ao policial que se deixa corromper, e o
segurança que deixa a escola ou o posto de saúde desguarnecido.
O
paradoxo é que a função principiológica do serviço público e dos seus agentes é,
ou deveria ser, sempre em favor do coletivo, e para todos os estratos sociais.
Até mesmo quando o ato a ser praticado venha a ser a simples liberação de um
pagamento a uma pequena, média, ou grande empresa privada que prestou um
determinado serviço, seja uma Prefeitura Municipal, ou um Governo de Estado,
quando o agente responsável diz não ao pagamento, por razões muita vez injustificáveis.
Em
maior ou menor grau, isso afeta todo o coletivo que se vincula àquela empresa,
desde os seus empregados, que eventualmente deixam de receber seus salários e
sofrem todas as implicações resultantes daquele “não”, dado pelo exercício do
poder pelo poder, se estendendo e afetando toda a cadeia que move a empresa que
teve seu pagamento adiado.
É
a cultura do “não podemos atender hoje”, ou “volte na próxima semana”, ou “só daqui
a três meses". “Infelizmente não será possível”, “o diretor está em
reunião, que vai se prolongar por todo o dia”. “Não será possível fazer o pagamento
hoje, e nem essa semana”. “Embora o seu processo esteja concluído e a
documentação correta e assinada pela empresa, está faltando o carimbo do chefe
do setor que autoriza o pagamento, e ele entrou de férias; só volta no final do
mês”.
O
leitor certamente já vivenciou essa realidade muita vez. Essa prática cotidiana
que se observa no setor público é um traço da falta de compromisso por parte de
um significativo contingente dos agentes públicos, seja nas grandes estatais ou
nas pequenas prefeituras. Essa distorção, além dos imensuráveis prejuízos
materiais que causa à população, no limite podemos afirmar que é o escancarar
da mais larga porta para a corrupção.
Em
bom português: Criam-se dificuldades para vender facilidades. Os exemplos
comezinhos aqui referidos são emblemáticos da grande corrupção
internacionalizada, que viceja no Brasil, dando origem a “mensalões” e “lava jatos”, revelando o atraso histórico
em que nos encontramos enquanto sociedade, e um estado organizado sob a égide
carcomida do patrimonialismo, e das relações incestuosas entre o público e o privado,
que remonta às sesmarias.
Essa
doída e vergonhosa realidade revela que os governos e a representação política
no Congresso Nacional, ao longo dos quase dois séculos de história da
República, falharam. Igualmente disseram “não” ao povo brasileiro. Mas também é
preciso dizer que o Poder Judiciário, que detém todos os poderes
constitucionais para coibir essas anomalias desde as origens, e que nos
envergonha a todos, também falhou. Fez o mesmo que os demais agentes públicos.
Também disse não ao papel restaurador que lhe cabia, punindo todos os crimes,
que foram se acumulando, deformando a elite política e a sociedade como um
todo.
Não
tivesse o Judiciário dito “não”, quando deixou de imprimir o esperado efeito
pedagógico a suas decisões, teria impedido que outros crimes fossem praticados
de forma cumulativa, como ocorreu. Mais do que admitir, é preciso que se debite
ao Judiciário grande parcela de responsabilidade pela corrupção endêmica em
nossa sociedade, quando ele não coibiu essas práticas e punido severamente na
forma de lei os malfeitores, seja por omissão ou por conivência, ao longo da
história.
Também
é preciso dizer que o próprio Judiciário foi contaminado pela corrupção, em
todas as suas instâncias. A imprensa, sempre muito “combativa” e atenta aos
vícios dos Poderes da República, (Executivo e Legislativo, notadamente do
segundo), se omitiu historicamente em denunciar a corrupção de magistrados,
deixando-os livres para continuar lenientes com desvios de conduta, dentro e
fora do Poder que eles integram.
Essa
ação de covardia e omissão da imprensa, ante o Poder Judiciário, foi e continua
sendo tão deletéria à democracia quanto os desvios cometidos pelos demais
agentes públicos. A imprensa também disse não.
O
rigor que hoje observamos na ação do juiz Sérgio Moro, na diligência do Ministério
Público e da Polícia Federal, e a mudança de postura que se observa nas reações
do STF, embora estejam a indicar que temos essas instituições cumprindo
minimamente o seu papel, também não é menos verdade que esse exercício de
cumprimento do seu dever institucional já é tardio.
A
negação de direitos aos jurisdicionados no Brasil é histórica, sem que tenhamos
observado ainda, mesmo nos tempos atuais, qualquer gesto de indignação por
parte dos Presidentes de Tribunais, que administram a Justiça, para mudar essa
vergonhosa realidade. Esse talvez seja o mais grave de todos os “nãos” já
referidos. Mas, como diz o dito popular, “antes tarde do que nunca!”.
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