CASAS DA INFÂNCIA
Reginaldo Vasconcelos*
É
lamentável que algumas pessoas, por um motivo ou por outro, não tenham vivido a
experiência maravilhosa de ser menino em casa de avós. Esse
paraíso, doce reduto em que o “espírito de porco” da infância faz chiqueiro, é
inesquecível. Quem tratava disso em suas crônicas, com propriedade e obsessão,
era o jornalista carioca Artur da Távola, despertando no leitor as mais meigas
lembranças.
Neto
mais velho de ambas as progênies, conheci os quatro avós e as suas duas casas.
Uma delas, a da família de meu pai, situada na Avenida Dom Manuel, embora não
fosse praiana propriamente, evocava o mar. De lá ia eu para o mar na lancha de
meu tio, domingo escancarado de sol, recebendo no rosto o chuvisco frio das
ondas feridas.
E
era marinho o vento que subia a rua toda tarde, sustentando no alto as arraias
coloridas. Era marinho também o estro moleque que nos levava ladeiras abaixo,
em busca da vizinha Praia de Iracema, roendo a massa travosa e pulverulenta dos
oitis do urbanismo e a carne rubra das castanholas cultivadas nos jardins, sal e
sangue marejando e tingindo a boca dos meninos.
Arrais
no céu e arraias no mar, naturezas diversas, mas gênios semelhantes, na leveza
do talhe e no talho defensivo, se enxergariam se vistas tivessem entre si. E do
mar vinham os peixeiros, com as suas prendas ainda meio vivas, sempre pendentes
de um cambão pelas embiras; garoupas enormes, pargos e cavalas gordas, às vezes
siris rosados e lagostas. Passavam em trote lento, apregoando languidos, enchendo
de maresia o tempo, e deixando resquícios de areia loura nas calçadas em que
faziam venda e retalhavam o seu pescado.
Aliás,
mesmo o povo dessa casa avita era de maiores marinhagens. Minha avó, carioca,
neta de marinheiro inglês, chegara do
Sul em vapor marítimo. Meu avô, por sua vez, e um dos meus tios, tinham funções
profissionais relacionadas ao além-mares. E seus demais filhos eram dados também a
viagens de navio. Foi de navio que meu pai levou minha mãe à segunda
lua-de-mel, que me deu origem.
Já
meus avós maternos haviam perdido nos sertões a vocação navegadora dos ibéricos,
e a sua casa em Fortaleza, embora não muito mais distante do tapete oceânico,
tinha outra evocação, até porque não era encravada sobre antigas dunas, como no
primeiro caso.
Ficava
no Benfica, e chamava para os sítios da hinterlândia, para as lagoas de Porangaba,
para as serras do Maciço. Tinha, portanto, o buquê frutado da Maraponga, o
hálito pecuário da Guaiuba, as evolações canavieiras de Redenção, e a promessa
refrescante das águas da montanha.
No
quintal grassavam as papoulas delicadas, os sapotizeiros dadivosos, e os
pombos, porque havia muitos pombos, ruflando asas e arrulhando sobre os muros.
Tinham nomes os mais curiosos os pombos-correios de meu tio. Um deles, “Jesus
Chorou”, em homenagem ao menor versículo da Bíblia.
Havia
também o cacimbão, cheio de brilhos distantes e sons cavos. Nos tédios da infância,
divertia-me em examinar o trafego das “taiocas”, formigas pretas e robustas que
caminhavam independentes sobre o mármore branco das soleiras, lisas e gastas
por décadas de uso, de convivência, de amor, de morte.
Para
uma das áreas laterais havia metros de venezianas fixas, que filetavam o sol da
manhã, nos deixando adivinhar os primeiros albores do dia, para tomarmos o café
com o pão partido em quatro, na longitude da bisnaga.
Mas,
para mim e o primo companheiro, todos os espaços do imenso casarão não
superavam o encanto proibido do porão não habitável, seus desvãos escuros de
catacumba, que entrevíamos das rótulas, ou pelas brechas do assoalho.
Por
uma fenda maior que havia onde a madeira do piso se quebrara vivíamos a fazer
prospecção, imaginando talvez encontrar ali alguma prenda misteriosa, oriunda
de outras eras e de outros mundos. Como nada divisássemos lá no fundo, e de lá
recebêssemos apenas uma brisa fria, cheirando a coisa antiga, remetíamos, vez por
outra, a esse pedaço doméstico de caos, pequenos objetos pessoais, como fossem
garrafas de náufragos a sinalizar a nossa existência no Universo.
Do livro Traços da Memória - Laços da Província, Volume I - Tiprogresso - Fortaleza - 1992.
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