O FACTÓIDE JURÍDICO
Rui Martinho Rodrigues*
O Judiciário desorientou-se. O recente
episódio do TRF/4 é o exemplo mais notório dos descaminhos da magistratura. Um
juiz, em um plantão, decidiu monocraticamente de forma inusitada. Podemos
dizer: a decisão foi esdrúxula por encontrar-se além da competência do plantão.
Certo. Seria suficiente.
Poderia, ainda, alegar que uma decisão monocrática não
poderia prevalecer contra um colegiado do mesmo grau de jurisdição (a oitava
turma do TRF/4), nem contra tribunais hierarquicamente superiores ao magistrado
que assim decidiu, conforme pronunciamentos de desembargadores do TRF/4, de
ministra do STJ e uma centena de integrante do MP e da magistratura.
Pode-se, todavia, analisar outro aspecto: os
fatores que levaram ao descaminho do Judiciário. Uma análise não conflita com a
outra. Nem se trata de estabelecer uma relevância maior ou menor para cada uma
delas. O ovo da serpente não está nas competências dos plantonistas. A origem
do mal é meta-jurídica. O aparelhamento ideológico do aparato estatal – e do
Judiciário em particular – está, ao lado de outros fatores, na origem do mal.
Mas este aspecto tem sido muito analisado. A exacerbação dos ânimos políticos,
aos quais a dimensão humana dos juízes não é imune, é outro fator, também muito
visível.
Menos discutidos são os efeitos da Nova Hermenêutica
Constitucional e do neoconstitucionalismo, fenômenos ligados à pós-modernidade,
que só são discutidos pelos juristas. Historiadores, sociólogos e outros
analistas da crise em curso não tratam do assunto. Mas a sociedade precisa ser
advertida do que está acontecendo. Um juiz singular, durante um plantão, não
ousaria expedir uma ordem teratológica, não fosse a anterioridade cronológica e
lógica de certos fenômenos.
A doutrina dominante trocou a subsunção do
fato à norma pela argumentação, nos termos da zetética. Negou a justeza da
generalidade da norma. Elegeu a suposta singularidade do caso concreto como objeto
do Direito. Substituiu a aplicação da lei pela concreção que leva da abstração
da norma ao fato supostamente singular. Optou por conceitos indeterminados,
positivados nas constituições contemporâneas, confiando ao juiz a tarefa de
valorar os fatos, usurpando a função legislativa.
A norma ficou no limbo. Isso
é pós-modernidade. É relativismo. Troca a supremacia da lei pelo “senso de
justiça” dos magistrados. É voluntarismo. A ética subjacente ao aspecto legal é
relativizada. É partidarização. A obrigação de fundamentar, como proteção
contra o arbítrio, o partidarismo e a corrupção, é argumento risível.
A
Constituição programática, analítica e rígida e o controle de
constitucionalidade difuso e concentrado judicializaram a política. A politização
e partidarização são consequências. O jusnaturalismo agora invocado é o
clássico. Não passa de um arrimo para a argumentação posta acima da lei, o
sonho dos sofistas.
Divergências são naturais. Os confrontos entre
ministros do STF, porém, são outra coisa. Expressam o que descrevemos. É uma
deturpação das garantias do Judiciário. Daí até contaminar toda a magistratura
é apenas um passo. Mas tudo começou no magistério e na constituinte.
Porto Alegre, 11/7/18.
COMENTÁRIO
A
prodigiosa lucidez do magistério de Rui Martinho Rodrigues ilumina com clareza
cristalina o seu pensamento, fazendo parecer simples uma complexa realidade.
Mesmo
alguém mais limitado e de descortino mais curto (como se observa no meu caso) consegue entender a explicação de que o Judiciário Brasileiro – e talvez seja
um fenômeno mundial – tende hoje a se afastar da letra fria da lei para julgar
de acordo com as particularidade dos casos concretos.
A
isso se tem chamado de “ativismo judiciário”, caracterizado quando o julgador,
em vez de “fundamentar” suas decisões conforme gizam as normas jurídicas positivadas,
mantendo a isenção de sua conduta judicante, ele decide de maneira diversa do
que comanda a legislação, fugindo do pragmatismo da lei, mas prestigiando o seu questionamento constante.
Para
isso, o juiz moderno se esmera em “motivar” livremente a decisão, conforme a
sua ideologia pessoal, considerando as peculiaridades fáticas do caso que
examina, e até a condição sócio-política de cada jurisdicionado, de tal modo a fazer passar bem longe a velha premissa de que “todos são iguais perante a lei”.
Esse
exercício de julgar sem exato respaldo naquilo que instrui o ordenamento
jurídico, driblando a norma com canhestras interpretações, através de um “contorcionismo
hermenêutico”, talvez se deva ao “mundo líquido” em que se vive atualmente, impondo
constante variação da realidade sócio-cultural, o que desatualiza rapidamente as
previsões da norma escrita, antes que o Legislativo tenha tempo hábil de
atualizá-la ou revogá-la.
A
lei reza, por exemplo, que o direito de propriedade é uma das pilastras da república democrática e capitalista brasileira, mas grupos despersonalizados invadem
fazendas produtivas, tomam prédios públicos de assalto, picham e vandalizam monumentos, seus integrantes e os seus lideres são
identificados (ou identificáveis), mas ninguém sofre nenhuma sanção, porque os juízes entendem
sejam lícitos os atos violentos dos tais “movimentos sociais”, ou manifestação lídima da sua liberdade de expressão.
Por
outra, se provoca o Judiciário pedindo seja proscrito, sob acusação de discriminação
e preconceito, um livro da obra magnífica do genial escritor Monteiro Lobato – um humanista virtuoso – quando, a
seu tempo e a seu modo, ele tentava apenas envolver com carinho uma gentil personagem de sua ficção, pertencente à raça negra.
Mas o que digo – e em tudo que foi dito eu e Rui Martinho concordamos – é que falsos juízes brasileiros, embora diplomados e investidos na
função, notadamente aqueles “paraquedistas” que são adrede nomeados para “aparelhar”
o Judiciário, vêm lançando mão dessa nova processualística para praticar
iniquidades, para defender grupos indignos, para flexibilizar a norma penal em
favor de notórios criminosos.
Reginaldo Vasconcelos
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