O FETICHISMO DO DIREITO
Rui Martinho
Rodrigues*
O fetichismo do Direito dominou a política a partir
do Século XX. É a ilusão a norma jurídica como solução para problemas
materiais. As constituições até então tratavam da estrutura e organização dos
poderes públicos, formas e sistemas de governo.
Dispunham sobre direitos e
garantias dos cidadãos no âmbito político; assim como no campo jurídico em
sentido estrito, como o devido processo legal e a ampla defesa. Omissas quanto
aos detalhes da vida em sociedade, elas deixavam livres o legislador e o
administrador do futuro.
A Carta Política Americana, originalmente tinha
sete artigos. Acrescentaram-se, depois, dezessete emendas. As dez primeiras
trataram das liberdades individuais. As outras dezessete tratam do Poder
Federal. A Constituição Americana de 1789 não estaria de pé, depois de tanto
tempo, se regulamentasse detalhes da vida em sociedade, a exemplo da nossa
CF/88, que dispõe sobre coisas como petróleo e relações de trabalho.
Caso tivesse dispositivos sobre lenha e outras
coisas do século XVIII, a Constituição Americana não estaria de pé.
Sintética é a denominação dada às leis magnas enxutas, definido o Estado e
normas de contrapoder, com obrigações de não fazer. Estas não dependem da
disponibilidade de meios para ter efetividade, nem oneram ninguém, pelo que não
estimulam tantas resistências e conflitos.
O Século XX entregou-se ao fetichismo do Direito. A
Revolução Mexicana de 1910 chegou ao poder e fez a Constituição de 1917, a
primeira a incluir os chamados direitos sociais. Depois os alemães fizeram uma
Carta Política em 1919, igualmente detalhista e “generosa”. Prevaleceu este
modelo: constituições analíticas. É a ideia de assegurar bem-estar social por
meio da norma jurídica.
O Direito Constitucional passou a definir
obrigações de fazer. Estas exigem meios e oneram alguém ao requisitá-los,
suscitando resistências. Junte-se a isso o modelo de constituição rígida, que,
se por um lado, oferece a vantagem da estabilidade normativa, por outro amarra
as mãos do legislador do futuro, impondo um entendimento do passado.
A CR/88, nos dispositivos reguladores da cidadania
e da organização do Estado, foi a melhor que já tivemos. Protegeu o cidadão com
o Direito Penal garantista, na organização dos poderes separou o Ministério
Público da Advocacia Geral da União, entre outras coisas. Merece elogios.
Seguiu, todavia, a onda internacional do fetichismo
do Direito, ilusão de que norma jurídica pode resolver problemas materiais.
Analítica e rígida (obstáculo a emendas), dispõe sobre direitos trabalhistas e sobre
combustíveis na iminência do descarte pela tecnológica. Pensa no bem-estar, não
na reserva do possível.
A CR/88 foi prefaciada (caso único no mundo) por
Ulysses Guimarães, candidatíssimo a Presidente da República. Subiu no palanque
eleitoral. Temos miséria? A Constituição resolverá. Poderíamos
constitucionalizar o direito à vida. Seríamos imortais ou ganharíamos uma
indenização do Estado quando alguém morresse.
O fetichismo do Direito criou dispositivos
“maravilhosos”. Universalizou a assistência à saúde. O mundo maravilhou-se.
Sanitaristas e políticos nacionais e estrangeiros elogiaram o SUS, realmente
muito bom para quem recebe tratamento no Hospital Sírio Libanês. Estudos
ideologizados conceberam a solução de todos os problemas, valendo-se de dados
seletivamente coletados, avaliam favoravelmente os seus resultados. Tais
pronunciamentos são repetidos como argumento e autoridade, que nada vale para
as ciências do ser.
Saúde e educação continuam péssimas. Os avanços de
indicadores tais como anos de escolaridade, analfabetismo, mortalidade infantil
e longevidade, entre outros, existem sim, mas não se devem ao fetichismo do
Direito e sim ao processo de urbanização, seguindo uma tendência mundial.
Éramos um país rural.
Hoje somos uma sociedade urbana. É mais fácil
escolarizar e cuidar da saúde na cidade que no campo, onde as populações são
isoladas pela dispersão e a distância. A urbanização não se deveu ao fetichismo
do Direito nem a ação de governo algum. Ela se deu contrariando os arautos do
bem-estar social, para quem o “êxodo rural” deveria ser impedido. A reforma
agrária era apoiada, entre outras coisas, no argumento da “manutenção do homem
no seu torrão natal”.
Nas cidades os indicadores também melhoraram. Mas
não foi a CR/88 que proporcionou tais avanços. O mérito é da ciência, da
difusão da informação pelo avanço das comunicações, orientando as famílias. A
natalidade caiu. É mais fácil cuidar de dois do que de oito filhos. É a janela
demográfica: a parcela infantil da população diminuiu e a idosa ainda não
aumentou tanto.
A demanda por novas escolas e novos serviços de
saúde reduziram-se. O saldo positivo na escolarização e na universalização dos
serviços de saúde não se deve à CR/88. Qualitativamente? Fracassamos. O
fetichismo é o substituto da revolução ou a sua nova fórmula. A túnica de Clio,
a deusa da História, porém, é inconsútil. Não tem emendas porque as rupturas,
em seu campo, não são inteiramente radicais, como querem os revolucionários.
Pesquisas deveriam buscar nos estudos interdisciplinares um antídoto para a
prisão dos paradigmas.
Porto Alegre, 25 de setembro de 2017
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