sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ARTIGO - Ao Leitor. Que Leitor? (JSN)


AO LEITOR.
QUE LEITOR?
João Soares Neto*


“Leitor, coautor do texto.” (Ledo Ivo)


Quem escreve não pode ser escravo de um leitor que desconhece. Ora, isso é simplificar a coisa. Ao escrever não se pode ir atirando a esmo. Há que ter foco. Ao escrever em jornal a pessoa tem menos de 24 horas para captar e interessar o leitor. No dia seguinte, o jornal é descartável. Razão pela qual vou disponibilizando no meu ‘www’ ou nos dos amigos.

Procuro, portanto, escrever para quem não está apenas interessado no cotidiano. Tento, a cada semana, ir mudando de rumo. A única coisa permanente é a minha forma de contar. Isso é o que se chama estilo.

Para se ter estilo, seja bom ou não, é preciso mourejar com as letras, saber das vírgulas, dos pontos, das interjeições e não exclamar muito. Ser o mais natural possível. Se consigo, é outra coisa.

Hoje, o leitor se depara com muitas opções que o confundem ou o atraem. No mundo digital há muito de enganação. Promete-se uma coisa e, em seguida, o usuário cai em armadilhas que o levam a caminhos não imaginados.  A curiosidade, na Internet, é uma faca de dois gumes, leva a novos conhecimentos/informações ou a simples engodo.

Há discussões acadêmicas sobre a natureza da crônica ou do artigo. Como diz Humberto Werneck: “Se não é aguda, é crônica.” Seriam eles alvitres literários? Trato um pouco de assuntos ligados ao cotidiano, a vidas das pessoas e os fatos que vão montando o nosso dia, desde as matinas até o arrebol. Matinas e arrebol foram apostas apenas como adereço.
 
Não é básico que o texto seja sempre ligado ao cotidiano, ao coloquial ou ao real. Ele pode ir, além disso. Divagar para que o leitor possa experienciar algo inusitado, como está sendo a tessitura deste escrito. O meu compromisso é trazer o leitor até o ponto final, mesmo sabendo que o ponto final é imaginário. Depois dele, cabe ao leitor maquinar o que se seguiria não tivesse o ponto existido.

O escritor deve aceitar como tema até uma pena que cai da asa de um pavão e isso nos levaria, por exemplo, ao Pavão Misterioso, do cantor e compositor Ednardo.

Eu não sigo cânones, vou lendo os dedos sobre o teclado e o que sai, muitas vezes, é o inesperado e não aquilo que, de princípio, gostaria de escrever. Como dizia Clarice Lispector: “Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me lê é por conta própria e auto risco”.

Se me tolherem a liberdade, se me pautarem, não serei eu, pois a liberdade é a minha característica. Sem ela, com certeza, ficaria aprisionado pelo assunto imposto, suas regras, seu número de palavras, a que não desejo me submeter, mesmo que a criatividade, como a de hoje, não seja o desiderato. Se não me encontro ou se me perco, resta a salvação e o arbítrio deste ponto final.





COMENTÁRIO:

Começo por desafiar o “ponto final” do articulista, que de fato é o ponto de partida para longas reflexões e discussões.

A primeira delas que me estimulo a fazer é sobre a distinção técnica entre crônica e artigo, e ainda o conto, que com aquela se confunde muita vez.

Penso que o artigo, stricto sensu, é sempre um texto de vocação utilitária, do ponto de vista prático, técnico, científico, cartesiano, analítico, tutorial, paradidático, não raro o rascunho de uma tese.

A crônica, por seu turno, se distingue do artigo e do conto porque pressupõe versar despretensiosamente sobre fato real, atual ou memorialístico, sempre pitoresco, com conotação psicológica, sociológica, filosófica, intimista.

Ela pode ser testemunhal ou confessional, de natureza burlesca ou lírica – neste caso se podendo classificar como “prosa poética”. Uma vez eu já disse que “fazer crônica é encontrar mel sob o vespeiro do cotidiano”.

Já o conto, semelhante à crônica, tem caráter ficcional, portanto mais literário, com psicologismo sobre os personagens e não sobre o narrador. A menos que o narrador seja ficcional, faça parte da história e, portanto, também seja personagem.

Uma peça jurídica, por exemplo, na descrição dos fatos, pode ter características de crônica, com força para comover o magistrado, e de artigo, na defesa do direito, visando convencê-lo. Mas, em momento algum pode ter semelhança com o conto.

O segundo ponto a abordar refere a afirmação de Clarisse Lispector, no sentido de que escrevia para ninguém. De fato, para o produtor de literatura o leitor, parco ou copioso, é um fator totalmente hipotético e incidental. O objetivo do escritor é a délivrance.

Por fim, sobre o aspecto original e inusitado, no que se refere ao conteúdo e à forma, ao estilo e ao tema, para que resulte interessante o texto tem realmente que espantar e surpreender.

Entrevistado certa vez por Jô Soares, um Diogo Mainard ainda jovem, que escandalizava pelo que dizia e por como o fazia em seus ensaios, pontificou com exatidão que o texto bem-comportado é letra morta.

Que quem escreve tem que recorrer ao imprevisível, para sair da platitude e do truísmo, da mesmice tautológica e da obviedade, para sobressair no mar de letras publicadas hoje em dia. Em terminologia moderna, se diria que o escritor tem que “sair da caixinha” e pontuar “fora da curva”.

Reginaldo Vasconcelos
        

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