DEVERES E CIDADANIA
Arnaldo Santos (*)
Na democracia brasileira o princípio de cidadania
encontra-se consubstanciado naquele que detém o poder originário, Sua
Excelência o Povo. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Assim
preceitua a Constituição de 1988, que dedica o longo art. 5º, que se desdobra
em 78 incisos, muitos deles subdivididos em parágrafos e letras sobre os
direitos individuais e coletivos do cidadão e suas respectivas garantias.
Embora o conceito de cidadania incorpore, não só os
direitos e garantias, mas também os deveres que o cidadão deve guardar e
respeitar ante ao Estado, fica a referência aos deveres, a meu sentir, além de
tênue, difusa, como pode ser observado em sua categorização.
Deveres do cidadão: votar para escolher os
governantes; cumprir as leis; educar e proteger seus semelhantes; proteger a
natureza; e proteger o patrimônio público e social do país. Colocados dessa forma,
esses deveres são pouco observados, inclusive pelo próprio Estado. Basta notar
o descaso com o meio ambiente.
Em uma sociedade cuja maioria é pouco letrada, e a
chamada elite, em geral, é politicamente analfabeta, culturalmente ignorante, e
socialmente insensível; além de trazer em seu DNA a cultura patrimonialista,
que a faz na prática “detentora de todos os direitos e quase nem um dever”,
gera toda essa distorção no exercício da cidadania.
A forma pouco enfática dispensada aos deveres e
obrigações que os indivíduos deveriam guardar, (o condicional “deveriam” é de
propósito) para com o bem coletivo, tem levado até os ditos “letrados,
politizados e urbano” no dizer do professor Rui Martinho Rodrigues, a
confundirem o dever de votar (o voto no Brasil é obrigatório), com direito ao
voto, que é basilar em qualquer democracia.
Preconceito, excludência, racismo velado, homofobia
explícita e outras amputações sociais são extensões dessa deformação do
conceito de cidadania; em parte pelo elitismo predominante, em parte porque os
mandarins políticos, e ou econômicos, fazem as leis para os outros cumprirem,
pois se julgam superiores a todo e qualquer regramento jurídico, e, em parte,
por ignorância e falta de educação, pura e simplesmente.
Qualquer das razões tem sua origem na total ausência
de uma cultura de pertencimento entre os indivíduos, manifestada a partir do
desprezo para com o patrimônio público, e em relação às regras de convivência
estabelecidas para o conjunto de uma sociedade dividida em classes, gerando o
abominável sentimento de superioridade entre os que se situam no “andar de
cima”.
A catástrofe maior dessa deformidade do exercício da
cidadania sem nenhum dever se materializa na usurpação dos direitos mais
elementares pertencentes ao coletivo, que podemos definir como a violência
nossa de cada dia, nas mais variadas formas e disfarces.
No contexto das médias e grandes cidades por exemplo,
a mobilidade urbana trouxe em seu cerne uma reivindicação coletiva, materializada
nas faixas exclusivas para a prática do “bicicletar”; para a classe “superior”,
ou simplesmente pedalar para a maioria.
O estranho é
observar que, parte dos que, no exercício legítimo da cidadania e dos direitos, pressionam o poder público para construir, com o dinheiro de todos, as
ciclovias, são os mesmos que estacionam seus carros luxuosos encima das
calçadas, impedindo o ir e vir dos pedestres. Param em vagas exclusivas para
cadeirantes e idosos, em filas duplas e, às vezes, triplas, em portas de
colégios, em flagrante descumprimento às leis de trânsito, que são igualmente dever
de todos, segundo o conceito de cidadania, e em desapreço aos direitos
coletivos. E ainda se revoltam quando multados. Não raro ainda se ouve o “você
sabe com quem tá falando?”.
Em relação ao fenômeno da endêmica corrupção no
Brasil, o princípio de amputação do republicanismo ético, do dever moral, e a
obrigação individual e coletiva de não roubar e não deixar roubar, não é
diferente. A Constituição, os códigos penal e civil são para todos os outros,
menos para os que governam o País.
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