domingo, 27 de abril de 2014

ENSAIO (RV)

O RETROVISOR DA HISTÓRIA
E O DESCONFORTO SOCIAL
Reginaldo Vasconcelos*


Muitos de nós somos filhos de pessoas que não se deveriam ter casado, ou não deveriam ter procriado entre si, seja por flagrante incompatibilidade de gênios, seja por sua indigência financeira na época, seja pela diferença sociocultural de suas famílias. Contudo, nenhum de nós pode agora renegar aquela união, por mais maldita, que resultou no nosso ser, porque senão não existiríamos.

Do mesmo modo, por mais odienta tenha sido a solução escravagista das colônias europeias dalém mar (essa fatalidade histórica tenebrosa em que os autóctones das Américas e os povos d´África sofreram agruras impensáveis), os brasileiros de hoje não podemos abjurar aquilo que nos cristalizou a nação, fazendo de nós o que somos, dotando-nos de generosa mestiçagem e de grande riqueza cultural.

Não podemos entender que o País tenha dívidas morais com os mais bugres ou mais negros de agora, pois isso parte da presunção branca de que o Brasil não é mestiço. Pois essa essência multiétnica é o que nos dá identidade e força genética, sem a qual estaríamos divididos entre um Portugal paupérrimo, uma África miserável e uma nação de silvícolas em estágio evolutivo primário, de tecnologia  rudimentar e parco conhecimento cientifico.

Aliás, acaso dívidas morais antigas se transmitissem a gerações futuras, os povos atuais não poderiam ser amigos, pois quase todos tiveram conflitos sangrentos ou se escravizaram entre si, em diferentes momentos da história universal, oportunidades em que muitas etnias do passado se fundiram, para fundar cepas diversas.

Assim também é despropositado querermos repristinar ódios políticos antigos, enxergando com os olhos de hoje o que se deu em outro cenário histórico, em que os jovens brasileiros mais conscienciosos e bravos não tinham alternativa ao ativismo ideológico e atentaram contra o regime, e os militares, por seu turno, não vislumbravam outra reação que não fosse o enfrentamento sangrento ao que na época, e nas circunstâncias de então, lhes parecia ameaçar o bem comum.

Enfim, as linhas tortas nas quais escreve o Arquiteto do Universo não podem ser questionadas depois que a realidade se transmuta e a justeza dos resultados se impõe, sobre fatos consumados. A vida e a literatura são repletas de casos de pessoas milionárias que somente reuniram fortuna em razão de uma injusta e sofrida demissão do passado, de modo que o gesto inamistoso daquele antigo patrão, tão maldito na época, se converteu em uma benção no futuro.

Por estas cristalinas razões são equivocadas as políticas de Governo atuais, glamourizadas pela mídia, dando azo a leis e regulamentos de feição humanitária e democrática, mas que terminam por infundir ódio racial no espírito daqueles em que melhor se identificam traços genéticos dessa ou daquela procedência, bem como provoca uma sanha vingativa nos descendentes dos que sofreram os embates ideológicos do passado.

Tudo se faz no país para vitimizar os cidadãos, por isso ou por aquilo, de modo que cada um tenha sempre algo a opor aos circunstantes: as cotas étnicas, a revogação da anistia, as “comissões da verdade”, os pruridos morais que criminalizam qualquer referência à obvia variação cromática da pele de alguém, criando um absurdo purismo de linguagem, em nome de um descabido coitadismo.

Absurda a presunção apriorística de que toda mulher é vítima do marido, até prova em contrário; de que todo criminoso é vítima da sociedade ou do “sistema”; de que todo despossuído tem direito de atacar aquilo que outros adquiriram legitimamente, com trabalho e esforço.

Equivocada a ideia de que todo consumidor de droga ilícita é um doente, que contraiu a moléstia dos amigos, de forma involuntária; de que um criminoso contumaz de dezessete anos e onze meses de idade é inimputável – todos esses disparates modernos, de pretensão republicana, mas que cada vez mais provocam desconforto social.

Tudo errado. Na verdade, negros, indígenas e brancos brasileiros, e suas variações mestiças, são iguais perante a lei, e não se podem distinguir por sua raça. Ponto e vírgula. Quem fugir desse preceito deve ser penalizado. Ponto final. Não deveria a própria lei discriminá-los, sob o pretexto de proteger os mais morenos, quando são somente os mais pobres, de qualquer origem étnica, que requerem proteção.

Na verdade, jovens brasileiros dos meados do século passado acreditaram em uma fórmula política nova e se insurgiram contra a iniquidade social, como haviam feito os republicanos contra a monarquia, mais atrás. Houve reação do poder constituído, como era de se prever e, de parte a parte, a revolução produziu sangue, suor e lágrimas, como soe acontecer.

Na verdade, é necessário dirigir a democracia brasileira olhando para o futuro, enxergando pelo para-brisa do tempo, priorizando a educação e valorizando o mérito, tratando igualmente os iguais, sem os desigualar forçadamente para privilegiar iniquidades. Na verdade, dirigir o país focando o retrovisor da História tem nos lançado na mais desconfortável buraqueira social.



*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
               

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