O RETROVISOR DA HISTÓRIA
E O DESCONFORTO SOCIAL
Reginaldo Vasconcelos*
Muitos de nós somos
filhos de pessoas que não se deveriam ter casado, ou não deveriam ter procriado
entre si, seja por flagrante incompatibilidade de gênios, seja por sua indigência
financeira na época, seja pela diferença sociocultural de suas famílias.
Contudo, nenhum de nós pode agora renegar aquela união, por mais maldita, que
resultou no nosso ser, porque senão não existiríamos.
Do mesmo modo, por
mais odienta tenha sido a solução escravagista das colônias europeias dalém mar
(essa fatalidade histórica tenebrosa em que os autóctones das Américas e os
povos d´África sofreram agruras impensáveis), os brasileiros de hoje não
podemos abjurar aquilo que nos cristalizou a nação, fazendo de nós o que somos,
dotando-nos de generosa mestiçagem e de grande riqueza cultural.
Não podemos entender
que o País tenha dívidas morais com os mais bugres ou mais negros de agora,
pois isso parte da presunção branca de que o Brasil não é mestiço. Pois essa
essência multiétnica é o que nos dá identidade e força genética, sem a qual
estaríamos divididos entre um Portugal paupérrimo, uma África miserável e uma
nação de silvícolas em estágio evolutivo primário, de tecnologia rudimentar e parco conhecimento cientifico.
Aliás, acaso dívidas
morais antigas se transmitissem a gerações futuras, os povos atuais não
poderiam ser amigos, pois quase todos tiveram conflitos sangrentos ou se escravizaram
entre si, em diferentes momentos da história universal, oportunidades em que
muitas etnias do passado se fundiram, para fundar cepas diversas.
Assim também é
despropositado querermos repristinar ódios políticos antigos, enxergando com os
olhos de hoje o que se deu em outro cenário histórico, em que os jovens
brasileiros mais conscienciosos e bravos não tinham alternativa ao ativismo
ideológico e atentaram contra o regime, e os militares, por seu turno, não
vislumbravam outra reação que não fosse o enfrentamento sangrento ao que na
época, e nas circunstâncias de então, lhes parecia ameaçar o bem comum.
Enfim, as linhas tortas
nas quais escreve o Arquiteto do Universo não podem ser questionadas depois que
a realidade se transmuta e a justeza dos resultados se impõe, sobre fatos consumados. A vida e a
literatura são repletas de casos de pessoas milionárias que somente reuniram
fortuna em razão de uma injusta e sofrida demissão do passado, de modo que o
gesto inamistoso daquele antigo patrão, tão maldito na época, se converteu em
uma benção no futuro.
Por estas cristalinas
razões são equivocadas as políticas de Governo atuais, glamourizadas pela mídia,
dando azo a leis e regulamentos de feição humanitária e democrática, mas que
terminam por infundir ódio racial no espírito daqueles em que melhor se
identificam traços genéticos dessa ou daquela procedência, bem como provoca uma
sanha vingativa nos descendentes dos que sofreram os embates ideológicos do
passado.
Tudo se faz no país para
vitimizar os cidadãos, por isso ou por aquilo, de modo que cada um tenha sempre
algo a opor aos circunstantes: as cotas étnicas, a revogação da anistia, as “comissões
da verdade”, os pruridos morais que criminalizam qualquer referência à obvia variação
cromática da pele de alguém, criando um absurdo purismo de linguagem, em nome
de um descabido coitadismo.
Absurda a presunção
apriorística de que toda mulher é vítima do marido, até prova em contrário; de
que todo criminoso é vítima da sociedade ou do “sistema”; de que todo despossuído
tem direito de atacar aquilo que outros adquiriram legitimamente, com trabalho e esforço.
Equivocada a ideia de
que todo consumidor de droga ilícita é um doente, que contraiu a moléstia dos
amigos, de forma involuntária; de que um criminoso contumaz de dezessete anos e
onze meses de idade é inimputável – todos esses disparates modernos, de
pretensão republicana, mas que cada vez mais provocam desconforto social.
Tudo errado. Na
verdade, negros, indígenas e brancos brasileiros, e suas variações mestiças,
são iguais perante a lei, e não se podem distinguir por sua raça. Ponto e vírgula. Quem fugir
desse preceito deve ser penalizado. Ponto final. Não deveria a própria lei discriminá-los,
sob o pretexto de proteger os mais morenos, quando são somente os mais pobres, de
qualquer origem étnica, que requerem proteção.
Na verdade, jovens
brasileiros dos meados do século passado acreditaram em uma fórmula política
nova e se insurgiram contra a iniquidade social, como haviam feito os
republicanos contra a monarquia, mais atrás. Houve reação do poder constituído,
como era de se prever e, de parte a parte, a revolução produziu sangue, suor e
lágrimas, como soe acontecer.
Na verdade, é
necessário dirigir a democracia brasileira olhando para o futuro, enxergando pelo
para-brisa do tempo, priorizando a educação e valorizando o mérito, tratando
igualmente os iguais, sem os desigualar forçadamente para privilegiar
iniquidades. Na verdade, dirigir o país focando o retrovisor da História tem
nos lançado na mais desconfortável buraqueira social.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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