terça-feira, 30 de junho de 2020

ARTIGO - A Crônica do Arbítrio Anunciado (RMR)


A CRÔNICA DO
ARBÍTRIO ANUNCIADO
Rui Martinho Rodrigues*



A obra “A crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez (1927 – 2014) não é uma narrativa linear. É realismo fantástico, mágico ou maravilhoso. O autor colombiano tem nuances que distinguem a vertente sul-americana da escola Europeia homônima, pelo acréscimo de alguns traços épicos à escola citada, dando um tom de verossimilhança aos textos. Fantástico e épico estão presentes na política e na sociedade brasileira, manifestos nos acontecimentos espantosos e no inacreditável. Os aspectos épicos estão nos fatos objetivamente extraordinários, aparentemente lendários, porém não heroicos, mas deploráveis.

Banalizar a violação da separação dos Poderes da República; desprezar as garantias constitucionais, como processo acusatório; a necessidade de objeto definido nos processos e inquéritos; ou apurar e punir condutas não tipificadas como crime, todas essas são coisas fantásticas. Praticadas pelo Pretório Excelso, indubitavelmente ultrapassam a ficção do gênero que mistura o inacreditável com os fatos objetivos, ao modo sul-americano do realismo mágico. 

Tais acontecimentos, de natureza política e jurídica, dão razão a Hugo von Hofmannsthal (1874 – 1929), para quem a política faz o que a literatura antecipa como o fez Kafka (1883 – 1924), na obra “O processo”. O STF legisla positivamente; muda entendimentos sobre o controle de atos discricionários de outros Poderes frequentemente. Desfez nomeação de delegado, pelo chefe do Executivo, para cargos de confiança na Polícia Federal; depois recusou-se a desfazer a nomeação de Joice Hasselmann para um cargo na Câmara dos Deputados, alegando ser prerrogativa discricionária do presidente da Casa.

Prendem-se manifestantes pacíficos, não os violentos. A liberdade de expressão de blogueiros sofre restrições, não a grande imprensa. Prisões sem processo e sem flagrante, até por conduta não tipificada, como é o caso das “fake news”, que, se não são calúnia, injúria ou difamação, são condutas penalmente atípicas.

O STF restringe o uso de algemas e prisão processual, beneficiando quem sofreu reiteradas condenações judiciais, mas algema e prende sem condenação outras pessoas. Themis recuperou a visão? Críticas aos titulares de cargos são consideradas ataques às instituições, como se criticar o marinheiro fosse atacar o navio. Colocando-se acima da crítica, Ministros se tornam os “mais iguais”, da “Revolução dos bichos” de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950).

A origem do mal, descrita por Hannah Arendt (1906 – 1975) estava no aparato legal que orientou Adolf Eichemann (1906 – 1962). No ativismo judicial a maldade está na astúcia de quem, desiludido da revolução pelas armas e sem maioria de votos, ressuscitou os reis filósofos de Platão (448/447 a.C. – 328/328/327 a.C.). 

Vestidos de toga, com uma constituição analítica e programática, positivando princípios (porque abertos à subjetividade da autoridade), quebrando os grilhões da lei e “libertando o juiz” em nome da justiça, trocaram a interpretação pela concreção. Esta passa da abstração da norma para o caso singular, pela nova hermenêutica constitucional. 

Acrescente-se o controle abstrato de constitucionalidade pelo STF e temos o entendimento flexível dos ministros. A interpretação conforme e a mutação constitucional são a cereja do bolo. A receita do arbítrio está pronta. Um Legislativo desmoralizado pelos escândalos é o convite para a festa do “déspotas esclarecidos”.

O tenentismo de toga se coloca como órgão supletivo do Judiciário. Legisla no que o Congresso se abstém para não contrariar o eleitorado. Nada mais antidemocrático do que um tribunal contrariar o eleitorado, forçar uma mudança cultural, movido por paixões, interesses ou convicções. “Fazer justiça”, para Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900) é vontade de potência. Torpezas se valem de argumentos nobres.


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