CRISES
E CRISES
Rui
Martinho Rodrigues*
Temos grave crise sanitária, econômica, política e
institucional. O mundo vive problemas sanitários e econômicos de modo diverso,
mas preocupante. As relações políticas entre as nações estão se agravando,
aproximando-se de impasses, seja EUA versus China; entre membros da União
Europeia ou Mercosul; entre Índia e China; no Oriente Médio, na península da
Coreia, Rússia e Ucrânia ou China com quase todos os seus vizinhos.
O súbito advento do mundo multipolar e a ausência de acordo entre zonas de influência contribui para isso. Os valores, no sentido axiológico, estão em crise no mundo inteiro. Família, escola, igrejas e todos os escaninhos da sociedade estão atribulados.
Os períodos de estabilidade nas relações internacionais
guardam forte correlação positiva com a existência e a observância de pactos
como os de Vestfália (1648), que possibilitou cento e cinquenta anos sem guerra
generalizada na Europa; e o Congresso de Viena (1815) que permitiu cem anos de
paz entre as grandes potências.
Pode-se dizer o mesmo dos acordos de Ialta (fevereiro de
1945) e Potsdam (Julho/agosto de 1945), reconhecendo áreas de influência das
potências vitoriosas na IIGM, permitindo a contenção da guerra fria.
No plano internacional não temos acordos entre as grandes
potências. Internamente as sociedades passam por profundas transformações
culturais, relativizando as referências de natureza ética. Família, escola,
igrejas são exemplos de crises relacionadas com a mudança cultural forçada,
resultante, entre outras coisas, do esforço, promovido pelo iluminismo e os
seus herdeiros, para destruí-los.
A falta de padrões definidos está na gênese da crise nas
instituições culturais como família, igreja e escola. É algo comparável a falta
de acordo entre as grandes potências. A indefinição de papéis sociais no
sistema parental e escolar, ao lado da indefinição de identidades, torna
incertos os códigos de comunicação na linguagem, nos gestos e nas condutas. Sem
uma língua comum, a confusão se estabelece ao modo da simbologia da Torre de
Babel.
A indefinição de papéis culturais se repete no tocante às
instituições políticas e jurídicas. A separação dos Poderes da República foi
atropelada pelo STF. A competência constitucional exclusiva do Ministério
Público para o exercício da persecução penal (CF/8, art. 129 e incisos) foi
desrespeitada pelo STF, que deu continuidade a um inquérito contrariando
parecer do PGR.
O processo acusatório foi substituído pelo processo
medieval inquisitorial, no qual acusador, investigador e julgador são a mesma
pessoa. O léxico, no uso coloquial e nos documentos oficiais, já não têm
significado claro.
Até entre pessoas cultas, de visão fascista, pode ter quem
defende Estado Mínimo, descentralização da Federação, a liberdade de expressão
e a economia capitalista, ainda que não tenha partido organicamente
constituído, invertendo-se assim o significado da palavra. Documentos oficiais
usam expressões colhidas do modismo, como o anglicismo fake news, que não existe como tipo penal, mas foi usada
oficialmente pelo STF para abrir inquérito.
Os leigos, com razões de sobra, perderam o respeito pelas
autoridades. O uso do baixo calão, atitudes e frases grosseiras, de um lado;
Ministros dos Tribunais Superiores acusados de receber mesadas, constando na
lista de propina de empreitaras; julgando réus com os quais têm laços de
afinidade ou prejulgando – ao lado de outras condutas desabonadoras – desacreditaram, não as instituições, mas os
titulares dos cargos de direção das mesmas, que não investigam tais notícias,
dependendo de contra quem elas sejam dirigidas; outros são corruptos; e outros
não observam a liturgia do cargo.
Não estamos próximos de quebra da ordem democrática. As
coisas já saíram dos trilhos.
COMENTÁRIO
“Na casa em que não tem pão, todos gritam e ninguém tem razão”. Esse
velho axioma se aplica perfeitamente, in
fine, ao Brasil dos nossos dias, conforme insinua Rui Martinho Rodrigues em
seu artigo acima.
No Brasil atual, todos
gritam e ninguém tem razão, embora o pão faltante seja ético e moral – enquanto
o bíblico alimento está ameaçado pela débâcle econômica, ante os rigores
sanitários impostos pela pandemia.
O Presidente,
legitimamente eleito sob a bandeira da moralidade, não economiza ferraduras
para escoicear os desafetos. Não mede palavras, aplica palavrões, desdenha a diplomacia, a patanhar sobre a liturgia relativa
ao elevado cargo que lhe concedeu o eleitorado. Fornece assim munição pesada aos
seus inimigos, ideológicos e fisiológicos, que militam na política, nos guetos
jurídicos e na imprensa.
Seus eleitores vão com
ele na mesma toada, gritando nas ruas e nas redes sociais – mas, justiça seja feita, nem ele, nem o
povo dele, jamais partiram para a violência real. Nem mesmo o sicário que tentou
matá-lo sofreu qualquer ato de vindita – até pelo contrário, foi protegido
pelas forças adversas incrustadas na República.
O primeiro contendor
do Presidente da República foi o Congresso Nacional, ante a sua atitude disruptiva de não “mensalizar”
parlamentares, de não negociar cargos, de não lotear o Estado com o Poder
Legislativo. Frustrados, Suas Excelências obstaram, de maneira orquestrada, as suas
grandes promessas de campanha – até que o Presidente capitulasse. E ele cedeu.
Depois lhe mostrou os
dentes o Supremo Tribunal Federal, que passou a lhe aplicar o lado desfavorável
da estante. Sim, o nosso ordenamento jurídico, a nossa doutrina livresca e a jurisprudência
dos nossos tribunais oferecem fundamentação díspar, com teses a favor de
qualquer causa, conforme a simpatia ou o interesse do intérprete.
O STF encontra a Lei de Talião na Carta da República – instaura inquérito, investiga e julga, e depois declara a constitucionalidade de seu ato; divulga reunião secreta do Executivo, e depois acusa pessoas por danos morais, danos que só se efetivaram pela divulgação que ele mesmo ordenou; proíbe o Presidente de fazer nomeações de sua competência, com base em mera ilação de conflito de interesses. Fere a liberdade de expressão, e diz fazê-lo em nome da democracia...
Sequer a semântica
vernácula é respeitada, e até a real acepção das palavras é ignorada para a
tipificação penal, como observa Rui Martinho. O mundo jurídico brasileiro resolveu
entender, por exemplo, que tudo pode ser enquadrado no racismo – incluindo xenofobia
e homofobia. Principalmente, a livre expressão daquilo de que se gosta ou não se gosta, quando apreciar ou não, o que quer que seja, é uma prerrogativa inalienável da pessoa.
Entende o STF que slogans pedindo intervenção militar, em
manifestações populares inócuas, sejam afrontas à democracia, atraindo o
interesse da Lei de Segurança Nacional; que publicações jocosas sejam fake news, quando essa expressão se
refere apenas a “notícias falsas”. Que imprecações emocionais feitas pela Internet
– que podem, sim, constituir crimes contra a honra, ou de incitação à violência – possam
ser também considerados como “crimes de ameaça”.
Ora, o crime de ameaça
somente se configura quando esta é expressa friamente, havendo a real intenção
de cumpri-la, e condições materiais de perpetrá-la. Tanto assim que não se subsume
ao art. 147 do Código Penal as afirmações ameaçadoras desferidas de modo
meramente retórico ou exaltado, por pessoas iradas, bêbadas, transtornadas – condutas que podem constituir outros delitos.
Enfim, o País descreve
hoje um cenário dantesco, em que, sobre miríades de defuntos da Covid-19, ceva-se
do desvio de verbas emergenciais a politicalha regional, enquanto em todas as
esferas políticas e todos os Poderes da República se promove uma inana corrida
eleitoral antecipada, num gládio encarniçado por poder político e por
supremacia ideológica. Assim, vai-se ao noticiário e tudo o que se vê por lá são abutres e cadáveres.
Que Deus tenha piedade
de nossas almas.
Reginaldo
Vasconcelos
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