quinta-feira, 18 de junho de 2020

ARTIGO - Crises e Crises (RMR)


CRISES E CRISES
Rui Martinho Rodrigues*



Temos grave crise sanitária, econômica, política e institucional. O mundo vive problemas sanitários e econômicos de modo diverso, mas preocupante. As relações políticas entre as nações estão se agravando, aproximando-se de impasses, seja EUA versus China; entre membros da União Europeia ou Mercosul; entre Índia e China; no Oriente Médio, na península da Coreia, Rússia e Ucrânia ou China com quase todos os seus vizinhos.

O súbito advento do mundo multipolar e a ausência de acordo entre zonas de influência contribui para isso. Os valores, no sentido axiológico, estão em crise no mundo inteiro. Família, escola, igrejas e todos os escaninhos da sociedade estão atribulados.

Os períodos de estabilidade nas relações internacionais guardam forte correlação positiva com a existência e a observância de pactos como os de Vestfália (1648), que possibilitou cento e cinquenta anos sem guerra generalizada na Europa; e o Congresso de Viena (1815) que permitiu cem anos de paz entre as grandes potências.

Pode-se dizer o mesmo dos acordos de Ialta (fevereiro de 1945) e Potsdam (Julho/agosto de 1945), reconhecendo áreas de influência das potências vitoriosas na IIGM, permitindo a contenção da guerra fria.

No plano internacional não temos acordos entre as grandes potências. Internamente as sociedades passam por profundas transformações culturais, relativizando as referências de natureza ética. Família, escola, igrejas são exemplos de crises relacionadas com a mudança cultural forçada, resultante, entre outras coisas, do esforço, promovido pelo iluminismo e os seus herdeiros, para destruí-los.

A falta de padrões definidos está na gênese da crise nas instituições culturais como família, igreja e escola. É algo comparável a falta de acordo entre as grandes potências. A indefinição de papéis sociais no sistema parental e escolar, ao lado da indefinição de identidades, torna incertos os códigos de comunicação na linguagem, nos gestos e nas condutas. Sem uma língua comum, a confusão se estabelece ao modo da simbologia da Torre de Babel.

A indefinição de papéis culturais se repete no tocante às instituições políticas e jurídicas. A separação dos Poderes da República foi atropelada pelo STF. A competência constitucional exclusiva do Ministério Público para o exercício da persecução penal (CF/8, art. 129 e incisos) foi desrespeitada pelo STF, que deu continuidade a um inquérito contrariando parecer do PGR.

O processo acusatório foi substituído pelo processo medieval inquisitorial, no qual acusador, investigador e julgador são a mesma pessoa. O léxico, no uso coloquial e nos documentos oficiais, já não têm significado claro.

Até entre pessoas cultas, de visão fascista, pode ter quem defende Estado Mínimo, descentralização da Federação, a liberdade de expressão e a economia capitalista, ainda que não tenha partido organicamente constituído, invertendo-se assim o significado da palavra. Documentos oficiais usam expressões colhidas do modismo, como o anglicismo fake news, que não existe como tipo penal, mas foi usada oficialmente pelo STF para abrir inquérito.


Os leigos, com razões de sobra, perderam o respeito pelas autoridades. O uso do baixo calão, atitudes e frases grosseiras, de um lado; Ministros dos Tribunais Superiores acusados de receber mesadas, constando na lista de propina de empreitaras; julgando réus com os quais têm laços de afinidade ou prejulgando – ao lado de outras condutas desabonadoras –  desacreditaram, não as instituições, mas os titulares dos cargos de direção das mesmas, que não investigam tais notícias, dependendo de contra quem elas sejam dirigidas; outros são corruptos; e outros não observam a liturgia do cargo.

Não estamos próximos de quebra da ordem democrática. As coisas já saíram dos trilhos.






COMENTÁRIO

Na casa em que não tem pão, todos gritam e ninguém tem razão”. Esse velho axioma se aplica perfeitamente, in fine, ao Brasil dos nossos dias, conforme insinua Rui Martinho Rodrigues em seu artigo acima.

No Brasil atual, todos gritam e ninguém tem razão, embora o pão faltante seja ético e moral  enquanto o bíblico alimento está ameaçado pela débâcle econômica, ante os rigores sanitários impostos pela pandemia.

O Presidente, legitimamente eleito sob a bandeira da moralidade, não economiza ferraduras para escoicear os desafetos. Não mede palavras, aplica palavrões, desdenha a diplomacia, a patanhar sobre a liturgia relativa ao elevado cargo que lhe concedeu o eleitorado. Fornece assim munição pesada aos seus inimigos, ideológicos e fisiológicos, que militam na política, nos guetos jurídicos e na imprensa.

Seus eleitores vão com ele na mesma toada, gritando nas ruas e nas redes sociais – mas, justiça seja feita, nem ele, nem o povo dele, jamais partiram para a violência real. Nem mesmo o sicário que tentou matá-lo sofreu qualquer ato de vindita – até pelo contrário, foi protegido pelas forças adversas incrustadas na República.

O primeiro contendor do Presidente da República foi o Congresso Nacional, ante a sua atitude disruptiva de não “mensalizar” parlamentares, de não negociar cargos, de não lotear o Estado com o Poder Legislativo. Frustrados, Suas Excelências obstaram, de maneira orquestrada, as suas grandes promessas de campanha – até que o Presidente capitulasse. E ele cedeu.

Depois lhe mostrou os dentes o Supremo Tribunal Federal, que passou a lhe aplicar o lado desfavorável da estante. Sim, o nosso ordenamento jurídico, a nossa doutrina livresca e a jurisprudência dos nossos tribunais oferecem fundamentação díspar, com teses a favor de qualquer causa, conforme a simpatia ou o interesse do intérprete. 

O STF encontra a Lei de Talião na Carta da República  instaura inquérito, investiga e julga, e depois declara a constitucionalidade de seu ato; divulga reunião secreta do Executivo, e depois acusa pessoas por danos morais, danos que só se efetivaram pela divulgação que ele mesmo ordenou; proíbe o Presidente de fazer nomeações de sua competência, com base em mera ilação de conflito de interesses. Fere a liberdade de expressão, e diz fazê-lo em nome da democracia...

Sequer a semântica vernácula é respeitada, e até a real acepção das palavras é ignorada para a tipificação penal, como observa Rui Martinho. O mundo jurídico brasileiro resolveu entender, por exemplo, que tudo pode ser enquadrado no racismo – incluindo xenofobia e homofobia. Principalmente, a livre expressão daquilo de que se gosta ou não se gosta, quando apreciar ou não, o que quer que seja, é uma prerrogativa inalienável da pessoa.

Entende o STF que slogans pedindo intervenção militar, em manifestações populares inócuas, sejam afrontas à democracia, atraindo o interesse da Lei de Segurança Nacional; que publicações jocosas sejam fake news, quando essa expressão se refere apenas a “notícias falsas”. Que imprecações emocionais feitas pela Internet – que podem, sim, constituir crimes contra a honra, ou de incitação à violência – possam ser também considerados como “crimes de ameaça”.

Ora, o crime de ameaça somente se configura quando esta é expressa friamente, havendo a real intenção de cumpri-la, e condições materiais de perpetrá-la. Tanto assim que não se subsume ao art. 147 do Código Penal as afirmações ameaçadoras desferidas de modo meramente retórico ou exaltado, por pessoas iradas, bêbadas, transtornadas  condutas que podem constituir outros delitos. 

Enfim, o País descreve hoje um cenário dantesco, em que, sobre miríades de defuntos da Covid-19, ceva-se do desvio de verbas emergenciais a politicalha regional, enquanto em todas as esferas políticas e todos os Poderes da República se promove uma inana corrida eleitoral antecipada, num gládio encarniçado por poder político e por supremacia ideológica. Assim, vai-se ao noticiário e tudo o que se vê por lá são abutres e cadáveres.

Que Deus tenha piedade de nossas almas.

Reginaldo Vasconcelos    



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