quarta-feira, 24 de maio de 2017

ARTIGO - A Sorte e o Mérito (RV)


A SORTE E O MÉRITO
Reginaldo Vasconcelos*


O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O socialismo é o contrário. (Millor Fernandes)



Um membro mais puro e ingênuo da família me consulta, em viagem rodoviária, se têm donos aquelas extensões de terra de um lado e do outro da estrada que percorremos de automóvel. Respondo que cada palmo daquelas vastidões tem o seu proprietário no registro de imóveis.

Então aquele espírito gentil quer saber por que razão não se compartilham aquelas áreas imensas e incultas com quem as queira explorar – e essa consulta deflagra uma longa reflexão que vai ao fulcro da questão ideológica que ocupa os pensadores e que há um século vem dividindo a humanidade.  

O destino de cada um deflui do binômio sorte-mérito. As pessoas nascem diferentes, em condições diferentes, e defrontam venturas e azares diferentes, em circunstâncias diferentes no curso de suas vidas, o que assoalha o  fadário pessoal de forma totalmente aleatória. Assim, como diriam os crentes, “Deus propõe”.

Então, “o homem dispõe”, concluiriam aqueles mais místicos: a partir daí tudo vai depender de seu desempenho e de seus esforços. Essa é a explicação lógica para o patrimônio e para o capital; a explicação obvia de existirem ricos e pobres, opulentos e miseráveis.

O grande mérito do pensamento marxista, que inspira o socialismo real e o sonho comunista, é o humanitário inconformismo com essa regra. Mas o seu grande óbice é que essa trágica realidade é inelutável. É assim que é. A pessoa nasce feia ou bela, sadia ou doente, dotada de tino ou embotada, em palácio ou na sarjeta, para evoluir ou regredir na escala econômica e social.
 
Os espiritualistas atribuem aos desígnios de Deus o que se consegue ser na vida, e a inspiradas virtudes o que é dado a cada um obter e adquirir. Mas o marxismo não crê em Deus e pretende desprezar a sorte e o mérito como fatores pelos quais cada um prospere ou fracasse, imaginando que caberá ao Estado a missão divinal de igualar o destino de todos através do regime, na direção do que consideram ser a tal “justiça social”.

Não há “justiça social”. Trata-se de uma ficção – segundo um dos mais festejados historicistas atuais, o cienteista israelense Yuval Noah Hariri, autor do livro “Sapiens”, o best-seller do momento, que analisa a História da Humanidade do ponto de vista antropológico.

Para além da chamada “justiça divina”, que é randômica, há a espontânea e virtuosa fraternidade humana – o altruísmo, a liberalidade, o desprendimento, a caridade – no alcance das forças pessoais, ou seja, no “alcance do braço” dos mais benevolentes indivíduos, dotados de um agudo sentimento de empatia.




Porém, todo o mais é a justiça jurídica, que cabe à longa manus do Estado aplicar, regulando as relações e garantindo a cada um o status social que ele tenha por sorte, e o patrimônio que obteve por mérito, nessa ordem ou vice-versa.

Os bichos não nascem sob garantias de Pã, e nenhuma pessoa traz os “direitos humanos” desde o útero. A Natureza entrega todos à sorte – sadios ou belos, feios ou doentes, sábios ou obtusos – para que, a partir de seus dotes e de seus méritos, construam o seu destino.

Não há leis universais que estejam escritas nas estrelas dimanando proteção à graciosa gazela que os leões vão devorar, nem ao leão, que a lança de um guerreiro massai vai abater, nem ao massai que outro leão vai vitimar – porque a lei universal é a da supremacia do mais forte, sem espaço para se estabelecer a oclocracia. 
      
Não estou defendendo que a sociedade não possa ou não deva criar e seguir normas protetivas pelos mais desvalidos de seus membros, em contrapartida às sanções penais que institui para os infratores de suas regras.

A sociedade faz isso em qualquer regime moderno e evoluído de governo, com suas políticas públicas, com as proteções trabalhistas e previdenciárias, sendo que o capitalismo opera pelo básico, universalizando ainda as oportunidades de progresso que viabilizam a "mobilidade social" (pai rico, filho nobre, neto pobre; pai pobre, filho rico, neto nobre sempre sopesando o mérito e considerando a sorte individual de cada qual distribuindo em seus programas sociais o que sobeje aos afortunados tributados, que licitamente produzem e acumulam.

Os socialistas sonham fazê-lo pela pretensa igualdade aquiliana entre as pessoas, o que, desenganadamente, a realidade da vida não permite. As pessoas são diversas, querem a diversidade, anseiam por competir e prosperar, porque essas pulsões são inerentes à sua condição na Natureza e à sua estrutura psíquica essencial. Só assim são estimuladas ao progresso.




Procusto, o personagem mitológico que com sua cama de ferro obrigava que todos nela coubessem exatamente, cortando as pernas dos maiores e espichando as dos menores, usava duas camas diferentes, conforme o caso, para que ninguém escapasse à sua régua igualitária.

Esses mitos gregos reproduzem a realidade existencial que a sabedoria antiga intuía – e, na experiência socialista real, há camas sob medida para os chefes e os áulicos do governo, os quais reservam para si um padrão de vida superior ao das massas enormes que igualam pela força – como confirma o russo Dmitry Sidorenko, interprete oficial da Embaixada do Brasil em São Petersburgo, Membro Honorário da ACLJ, que viveu in loco o período soviético.  

Os intelectuais que defendem o socialismo, os teóricos da ideologia comunista, os militantes de esquerda, os ativistas sociais – mesmo os seus grandes paradigmas do passado – nunca começam por si mesmos a aplicação das regras da utopia que defendem, pois nada de seu dividem ou compartilham, alegando que só deveriam fazê-lo dentro da “nova ordem mundial” que imaginam poder implantar.

Aliás, alguém tem dito que não existe fronteira exata entre os conceitos de “esquerda” e de “direita”. Mas essa é exatamente a distinção entre as duas classes: a esquerda acredita ser possível a igualdade socioeconômica universal, mesmo com o prejuízo da liberdade; a direita defende que na desigualdade natural os que melhor prosperem livremente, pela sorte e pelo mérito, apliquem a fraternidade em benefício dos demais.

Os integrantes da direita se dividem ainda entre egoístas e altruístas. Os egoístas são avaros, são desonestos, são usurários, são cúpidos, são especuladores, são corruptos, barbarizam o meio-ambiente pelo lucro, são aéticos, são os tais “capitalistas selvagens”. Os altruístas trabalham, criam, empreendem, cumprem as leis, pagam tributos, fazem benemerência, praticam o mecenato, cumprem a função social da empresa e da propriedade que detêm.  

Já os que compõem a esquerda, no Brasil, na Cupa, na Coreia do Norte de hoje, e na Rússia de ontem, enfim, em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo, estes dividem-se entre os ideológicos e os fisiológicos. Os ideológicos acreditam piamente nas suas convicções, são apaixonados por elas, e constroem a fantasia de que a vida deveria ser um festival igualitário, e o mundo um paraíso socialista. 

Já os esquerdistas fisiológicos são fracassados ressentidos, hipócritas e oportunistas, que enxergam no esquerdismo uma maneira fácil de prosperar sem fazer jus. São os chamados “ideólogos da inveja”. Esses não rezam e não trabalham, não produzem e não doam, não estudam e não criam, mas apenas levantam bandeiras por desmerecidos direitos humanos e  benefícios sociais. 



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