CÃES E HELICÓPTEROS
(NOVELA PSICOLOGISTA DE BASE REAL)
Reginaldo Vasconcelos
Capítulo IV
O negociador desligara antes, para transferir à gangue o
sentimento de insegurança. O adiamento da resposta da família era estratégico,
pois quanto mais tempo convive o sequestrador com o sequestrado, menor a
possibilidade de execução deste. E a
execução acontece, muitas vezes, mesmo após o pagamento do resgate. A ligação
fora gravada: interurbano, telefone público. O sequestrador deveria estar em
algum município vizinho. Sons periféricos de música e vozes; àquela hora, no
interior do Nordeste, com toda a certeza o telefonema viera do baixo
meretrício. Procuraram na fala do bandido qualquer gíria, qualquer palavra de
jargão profissional, qualquer coisa que desse subsídio.
A doença de Lisberte também era um blefe, para evitar que a
maltratassem. O nome do medicamento é uma expressão em inglês, para tentar a
confirmação acidental por parte da moça sequestrada, que dominava bem o idioma
britânico: “Remédio-Meu”, literalmente, uma construção frasal um tanto
transversa, em inglês. E funcionou. Tenente voltou ao telefone e ligou para
Sheila, sua amante, que permanecia na residência do casal, numa terceira
localidade da mesma região, e deu instruções para que fosse de automóvel ao
sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro, vigiado por Onofre e o caseiro, e
sondasse sobre a veracidade da doença. “Pergunta se ela sabe o que é
Medicin-Mine, medicina sem o a, traço, eme i, ene e. Não alongue a conversa”.
Lisberte, que então só pensava no pai, ao receber o papel
das mãos de Onofre, imaginou, com acerto, conter algo da parte da família:
– O que é isso? – perguntou o mascarado. Lisberte deteve-se
um pouco, refletiu e deu a tradução não literal:
– Meu remédio.
Onofre, gigante simplório, interessou-se mais e acrescentou
outra pergunta:
– Então você sofre mesmo de uma doença grave?
– Sofro, e posso morrer a qualquer momento – respondeu a
moça, que então já compreendera tudo.
A solução encontrada pelo líder da quadrilha para o pagamento do
resgate era engenhosa. Tenente vai determinar que a quantia exigida seja
acondicionada em saco plástico e lançada com um peso, de sobre um barco,
durante a noite, em ponto determinado por uma boia no meio da represa que serve
às cidades e às culturas do vale. Mergulhador experiente, ele observará
submerso a movimentação na superfície através de um periscópio que ele mesmo construiu,
usando pequenos espelhos nas extremidades de um tubo plástico semiflutuante,
apanhará o malote com o dinheiro no fundo do lago e tomará uma canalização
adutora, que o levará a um dos muitos canais, de onde fugirá pela mata.
Entrementes, a equipe de especialistas contratada por Gotardo Batista,
o milionário pai da sequestrada, esforça-se para identificar os sequestradores.
Fizeram vir de Iamaná, cidade vizinha, o cego holandês Ivan Ferruven, hábil
identificador de vozes, capaz de reconhecer pela fala todos os clientes do seu
bar, local popular frequentíssimo. O cego retém na memória centenas de timbres,
de forma que tão logo um conhecido lhe dirija a palavra, ele lhe dirá logo qual
a sua música e bebida preferidas. Mas, já na primeira oitiva da gravação do
telefone de Tenente, Ivan é taxativo: não sabe quem é; não conhece a fala; o
dono daquela voz nunca estivera no seu pub.
De fato, a família de Tenente é da região, mas ele se criou no Rio de Janeiro,
sendo estranho ao holandês. Qualquer um dos outros sequestradores teria sido
identificado.
Enquanto isso, o ingênuo Onofre, mais e mais compadecido da sua vítima,
tendo anotado o fictício nome de remédio que a família prescrevera para
Lisberte, saiu do sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro, para tentar
comprar o medicamento na cidade, sem comunicar aos demais a sua iniciativa. O caseiro permaneceu de guarda, sem saber o
destino do comparsa. Onofre, em sua velha camioneta, tenta a primeira drograria
de Iamaná. Entrega ao balconista o papel com a palavra “Medicin-Mine”.
Onofre não sabe que em cada farmácia da região o pai de Lisberte colocou
agentes disfarçados, apostando na hipótese de que os autores do sequestro
resolvam adquirir o falso medicamento, receosos de vir a ter problemas com a
saúde de sua valiosa presa. Logo na primeira botica que encontra em Iamaná o
grandalhão entra e entrega ao balconista o papel com a palavra que acredita ser
o nome do remédio. O rapaz, instruído sobre aquele termo em inglês, mas
descrente de que aquilo viesse mesmo a acontecer, ao ler a inscrição fica
apopléctico. Olha em torno mal-disfarçadamente.
Os agentes não estão à vista no momento; relaxaram a vigilância e
conversam na calçada, entre pilhérias e risadas. O moço, nervoso, manda
aguardar e desaparece no interior da drogaria. De lá, com alguma demora, põe-se
chamando alguém. O sequestrador percebe a trama mal urdida e se ausenta
apressado. Toma a estrada, mas não se livra da sensação de estar sendo seguido.
Compreende a asneira que fez e acha que foi reconhecido como dono da culpa que
a si mesmo se atribui. Não para, não toma a estrada do sítio e segue para a
capital, a quatrocentos quilômetros, onde a sua velha mãe reside.
Aterrado com a possibilidade de ser preso, de ter botado a perder todo
o plano da quadrilha, homizia-se na cidade grande e não faz mais contato. O
rapaz da farmácia, por sua vez, percebendo que falhara, traído pelo próprio
nervosismo, temeroso de atrair a ira das duas partes – a gangue e a família poderosa – e de ser triturado entre elas, guarda
segredo sobre o ocorrido.
E chega dia e hora marcados para a mensagem, pelo rádio, do pai da sequestrada.
A audiência está atenta. A programação é interrompida por música solene; o
mundo para; tudo silencia. Tenente, reunido com os demais no sítio onde ficava
o cativeiro, cofia o bigode nervosíssimo. A música calma é irritante. Os anuns
esvoejam entre as carnaúbas, de raro soltando gritos lânguidos como maldizendo
o sol a pino. “Fala logo, velho cretino!”. (Continua na próxima sexta-feira)
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