sexta-feira, 12 de agosto de 2016

NOVELA - Cães e Helicópteros (RV)

CÃES E HELICÓPTEROS
 (NOVELA PSICOLOGISTA DE BASE REAL)
Reginaldo Vasconcelos


Capítulo IV

O negociador desligara antes, para transferir à gangue o sentimento de insegurança. O adiamento da resposta da família era estratégico, pois quanto mais tempo convive o sequestrador com o sequestrado, menor a possibilidade de execução deste.  E a execução acontece, muitas vezes, mesmo após o pagamento do resgate. A ligação fora gravada: interurbano, telefone público. O sequestrador deveria estar em algum município vizinho. Sons periféricos de música e vozes; àquela hora, no interior do Nordeste, com toda a certeza o telefonema viera do baixo meretrício. Procuraram na fala do bandido qualquer gíria, qualquer palavra de jargão profissional, qualquer coisa que desse subsídio.

A doença de Lisberte também era um blefe, para evitar que a maltratassem. O nome do medicamento é uma expressão em inglês, para tentar a confirmação acidental por parte da moça sequestrada, que dominava bem o idioma britânico: “Remédio-Meu”, literalmente, uma construção frasal um tanto transversa, em inglês. E funcionou. Tenente voltou ao telefone e ligou para Sheila, sua amante, que permanecia na residência do casal, numa terceira localidade da mesma região, e deu instruções para que fosse de automóvel ao sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro, vigiado por Onofre e o caseiro, e sondasse sobre a veracidade da doença. “Pergunta se ela sabe o que é Medicin-Mine, medicina sem o a, traço, eme i, ene e.  Não alongue a conversa”.

Lisberte, que então só pensava no pai, ao receber o papel das mãos de Onofre, imaginou, com acerto, conter algo da parte da família:

– O que é isso? – perguntou o mascarado. Lisberte deteve-se um pouco, refletiu e deu a tradução não literal:
– Meu remédio.

Onofre, gigante simplório, interessou-se mais e acrescentou outra pergunta:

– Então você sofre mesmo de uma doença grave?

– Sofro, e posso morrer a qualquer momento – respondeu a moça, que então já compreendera tudo.

A solução encontrada pelo líder da quadrilha para o pagamento do resgate era engenhosa. Tenente vai determinar que a quantia exigida seja acondicionada em saco plástico e lançada com um peso, de sobre um barco, durante a noite, em ponto determinado por uma boia no meio da represa que serve às cidades e às culturas do vale. Mergulhador experiente, ele observará submerso a movimentação na superfície através de um periscópio que ele mesmo construiu, usando pequenos espelhos nas extremidades de um tubo plástico semiflutuante, apanhará o malote com o dinheiro no fundo do lago e tomará uma canalização adutora, que o levará a um dos muitos canais, de onde fugirá pela mata.

Entrementes, a equipe de especialistas contratada por Gotardo Batista, o milionário pai da sequestrada, esforça-se para identificar os sequestradores. Fizeram vir de Iamaná, cidade vizinha, o cego holandês Ivan Ferruven, hábil identificador de vozes, capaz de reconhecer pela fala todos os clientes do seu bar, local popular frequentíssimo. O cego retém na memória centenas de timbres, de forma que tão logo um conhecido lhe dirija a palavra, ele lhe dirá logo qual a sua música e bebida preferidas. Mas, já na primeira oitiva da gravação do telefone de Tenente, Ivan é taxativo: não sabe quem é; não conhece a fala; o dono daquela voz nunca estivera no seu pub. De fato, a família de Tenente é da região, mas ele se criou no Rio de Janeiro, sendo estranho ao holandês. Qualquer um dos outros sequestradores teria sido identificado.

Enquanto isso, o ingênuo Onofre, mais e mais compadecido da sua vítima, tendo anotado o fictício nome de remédio que a família prescrevera para Lisberte, saiu do sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro, para tentar comprar o medicamento na cidade, sem comunicar aos demais a sua iniciativa.  O caseiro permaneceu de guarda, sem saber o destino do comparsa. Onofre, em sua velha camioneta, tenta a primeira drograria de Iamaná. Entrega ao balconista o papel com a palavra “Medicin-Mine”.

Onofre não sabe que em cada farmácia da região o pai de Lisberte colocou agentes disfarçados, apostando na hipótese de que os autores do sequestro resolvam adquirir o falso medicamento, receosos de vir a ter problemas com a saúde de sua valiosa presa. Logo na primeira botica que encontra em Iamaná o grandalhão entra e entrega ao balconista o papel com a palavra que acredita ser o nome do remédio. O rapaz, instruído sobre aquele termo em inglês, mas descrente de que aquilo viesse mesmo a acontecer, ao ler a inscrição fica apopléctico. Olha em torno mal-disfarçadamente.

Os agentes não estão à vista no momento; relaxaram a vigilância e conversam na calçada, entre pilhérias e risadas. O moço, nervoso, manda aguardar e desaparece no interior da drogaria. De lá, com alguma demora, põe-se chamando alguém. O sequestrador percebe a trama mal urdida e se ausenta apressado. Toma a estrada, mas não se livra da sensação de estar sendo seguido. Compreende a asneira que fez e acha que foi reconhecido como dono da culpa que a si mesmo se atribui. Não para, não toma a estrada do sítio e segue para a capital, a quatrocentos quilômetros, onde a sua velha mãe reside.

Aterrado com a possibilidade de ser preso, de ter botado a perder todo o plano da quadrilha, homizia-se na cidade grande e não faz mais contato. O rapaz da farmácia, por sua vez, percebendo que falhara, traído pelo próprio nervosismo, temeroso de atrair a ira das duas partes a gangue e a família poderosa – e de ser triturado entre elas, guarda segredo sobre o ocorrido.


E chega dia e hora marcados para a mensagem, pelo rádio, do pai da sequestrada. A audiência está atenta. A programação é interrompida por música solene; o mundo para; tudo silencia. Tenente, reunido com os demais no sítio onde ficava o cativeiro, cofia o bigode nervosíssimo. A música calma é irritante. Os anuns esvoejam entre as carnaúbas, de raro soltando gritos lânguidos como maldizendo o sol a pino. “Fala logo, velho cretino!”. (Continua na próxima sexta-feira)     

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