CÃES E
HELICÓPTEROS
(NOVELA
PSICOLOGISTA DE BASE REAL)
Reginaldo
Vasconcelos
Capítulo III
Desde logo, Onofre tomara-se por protetor da
vítima, enternecido com a sua beleza juvenil e compadecido de suas angústias
óbvias. Havia também o caseiro do sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro,
homem de confiança do patrão, que pretendia realizar o sonho de ir viver em São
Paulo, após o sequestro. Tenente ruminava a ideia muda de elimina-lo no final,
como queima de arquivo.
“Mato tem olhos, paredes têm ouvidos”, diz o
adágio popular. Um homem que trafegava em sua bicicleta pela rodovia, a qual
passa em plano elevado a uns cem metros do local, viu a abordagem do carro de
Lisberte e sua captura, indo incontinenti contar o fato nos escritórios da
empresa do pai dela, não sem antes espalhar pela cidade aos quatro ventos:
“pegaram a moça de Gotardo Batista”.
Por isso houve grande agitação naquela noite
no campo de pouso de Lucas, pois a gente sertaneja acompanha de perto o júbilo
e o drama dos modernos suseranos – a gente de posse que domina a economia e a
política nas províncias, e que, por sua vez, acostuma-se ao assédio do povinho
e não o repele. O avião subiu com toda a família de Gotardo para lugar não
sabido. Outro chegou, horas depois, com quatro assessores da empresa,
incumbidos de negociar com os sequestradores.
Desvendada no cubículo mal iluminado,
Lisberte debruçou-se sobre a cama, único móvel disponível, para a sua primeira
crise de choro. A vida era dúvida; o resto era medo. Somente a lembrança do pai
lhe refrescava o coração. Via suas mãos no pensamento, ouvia-lhe a voz
resoluta, sabia que a ira do velho moveria montanhas. Mas o medo é presente e a
confiança é uma aposta. O medo é fato e todo o mais é esperança. A luz vinha do
banheiro, porta entreaberta, de onde vinha também o cheiro característico de
umidades.
Tenente fez contato com a residência de
Gotardo Batista somente na madrugada de terça-feira, 72 horas depois do
sequestro. Deixara correr o tempo para tencionar a família, enquanto ele
próprio e sua gang relaxavam os nervos, após o grande estresse do primeiro ato.
Escolhera aquela hora como o melhor momento psicológico, quando as mentes
indormidas estão exaustas e todos os problemas parecem ainda maiores – segundo
calculara.
No entanto, o telefone tocou seguidas vezes
antes que atendessem. Estruturado para dominar a cena, aquela demora o deixou
muito nervoso. A campainha insistente incomodava quem imaginara estar sendo
esperado. Pior: foi atendido pela frieza de um negociador profissional. Tenente
estava sóbrio, não bebera nem consumira droga, para não correr o risco de
perder o controle da operação. Estava em guerrilha, era o líder, guardava
“princípios profissionais” – segundo lhe fazia crer a sua paranoia. No íntimo,
lutava para não perder o controle de si mesmo.
Do outro lado da linha o negociador informou
que a família não estava na cidade e não havia possibilidade de comunicação com
ela.
– Eu mato a menina! – ameaçou Tenente.
– O problema e seu – foi a resposta.
– Aliás – continuou o negociador – mantê-la
viva pode ser o seu segundo problema. Ela sofre de “epilepsia cardíaca” e tem
que tomar uma pílula toda manhã. Sem estar medicada, a qualquer momento pode
ter um ataque e não tornar a si, principalmente se exposta a sofrimento e
agitação. O nome do remédio e “medicin-mine”.
– Você acha que eu sou idiota para acreditar
numa história dessa?
– Eu acho que você não precisa acreditar, mas
deve tomar providências como se tivesse acreditando, pois se fizer assim não
arrisca nada. Medicin-mine: medicina sem o a, traço, eme i, ene e.
Tenente estava irritado com a aparente
indiferença do negociador. Mas não podia demonstrar. Ganhava o jogo de nervos
quem se mostrasse mais tranquilo. Fingiu então não dar nenhuma importância à
afirmação de que a Lisberte tivesse doença grave, nem ter atentado para o nome
do remédio soletrado pelo interlocutor: “medicina sem o a, traço, eme i, ene
e”.
– Ou o velho fala comigo ou a moça morre de
qualquer jeito! – verberou o sequestrador. Do outro lado da linha, o homem
impassível cumpria burocraticamente a sua função.
– Uma mensagem gravada pelo Dr. Gotardo,
dirigida a você, vai ao ar na sexta-feira, pela rádio difusora de Lucas,
exatamente ao meio-dia.
– Não quero saber de conversa mole.
Quinhentos mil dólares ou a moça morre!
– Transmitirei a sua proposta. O pai dela
ainda não acionou a polícia e já fez um grande saque bancário em dinheiro,
segundo estou informado. Mas a resposta somente na sexta-feira, pelo rádio.
Controle os nervos até lá para não estragar tudo – encerrou o negociador,
desligando o telefone.
A mente do bandido deu voltas no ar. “Que
diabo é isso? Será que esse cretino pensa que eu estou com medo? Que papo é
esse de controlar os nervos?” Sopesou rapidamente as alternativas:
devolver-lhes um “presunto” ou entrar no jogo deles? Refreou os impulsos;
esfriou a cabeça. “Se eu abortar a operação ele vai pensar que eu afrouxei. Na
verdade, tenho a faca e o queijo. Posso muito bem esperar”. Ali mesmo, no bar
defronte ao orelhão, Tenente virou uma dose dupla de rum.
O descaso do negociador, obviamente, não era
verdadeiro. Tudo estava calculado. Tudo medido e pesado, com orientação de
psicólogos, especialistas em comportamento criminoso. Tudo um grande tabuleiros
de xadrez. (Continua na próxima sexta-feira)
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