sexta-feira, 5 de agosto de 2016

NOVELA - Cães e Helicópteros (RV)

CÃES E HELICÓPTEROS

(NOVELA PSICOLOGISTA DE BASE REAL)
Reginaldo Vasconcelos


Capítulo III


Desde logo, Onofre tomara-se por protetor da vítima, enternecido com a sua beleza juvenil e compadecido de suas angústias óbvias. Havia também o caseiro do sítio de Leôncio, onde ficava o cativeiro, homem de confiança do patrão, que pretendia realizar o sonho de ir viver em São Paulo, após o sequestro. Tenente ruminava a ideia muda de elimina-lo no final, como queima de arquivo.

“Mato tem olhos, paredes têm ouvidos”, diz o adágio popular. Um homem que trafegava em sua bicicleta pela rodovia, a qual passa em plano elevado a uns cem metros do local, viu a abordagem do carro de Lisberte e sua captura, indo incontinenti contar o fato nos escritórios da empresa do pai dela, não sem antes espalhar pela cidade aos quatro ventos: “pegaram a moça de Gotardo Batista”.

Por isso houve grande agitação naquela noite no campo de pouso de Lucas, pois a gente sertaneja acompanha de perto o júbilo e o drama dos modernos suseranos – a gente de posse que domina a economia e a política nas províncias, e que, por sua vez, acostuma-se ao assédio do povinho e não o repele. O avião subiu com toda a família de Gotardo para lugar não sabido. Outro chegou, horas depois, com quatro assessores da empresa, incumbidos de negociar com os sequestradores. 

Desvendada no cubículo mal iluminado, Lisberte debruçou-se sobre a cama, único móvel disponível, para a sua primeira crise de choro. A vida era dúvida; o resto era medo. Somente a lembrança do pai lhe refrescava o coração. Via suas mãos no pensamento, ouvia-lhe a voz resoluta, sabia que a ira do velho moveria montanhas. Mas o medo é presente e a confiança é uma aposta. O medo é fato e todo o mais é esperança. A luz vinha do banheiro, porta entreaberta, de onde vinha também o cheiro característico de umidades.

Tenente fez contato com a residência de Gotardo Batista somente na madrugada de terça-feira, 72 horas depois do sequestro. Deixara correr o tempo para tencionar a família, enquanto ele próprio e sua gang relaxavam os nervos, após o grande estresse do primeiro ato. Escolhera aquela hora como o melhor momento psicológico, quando as mentes indormidas estão exaustas e todos os problemas parecem ainda maiores – segundo calculara.

No entanto, o telefone tocou seguidas vezes antes que atendessem. Estruturado para dominar a cena, aquela demora o deixou muito nervoso. A campainha insistente incomodava quem imaginara estar sendo esperado. Pior: foi atendido pela frieza de um negociador profissional. Tenente estava sóbrio, não bebera nem consumira droga, para não correr o risco de perder o controle  da operação. Estava em guerrilha, era o líder, guardava “princípios profissionais” – segundo lhe fazia crer a sua paranoia. No íntimo, lutava para não perder o controle de si mesmo.

Do outro lado da linha o negociador informou que a família não estava na cidade e não havia possibilidade de comunicação com ela.

– Eu mato a menina! – ameaçou Tenente.

– O problema e seu – foi a resposta.

– Aliás – continuou o negociador – mantê-la viva pode ser o seu segundo problema. Ela sofre de “epilepsia cardíaca” e tem que tomar uma pílula toda manhã. Sem estar medicada, a qualquer momento pode ter um ataque e não tornar a si, principalmente se exposta a sofrimento e agitação. O nome do remédio e “medicin-mine”.

– Você acha que eu sou idiota para acreditar numa história dessa?

– Eu acho que você não precisa acreditar, mas deve tomar providências como se tivesse acreditando, pois se fizer assim não arrisca nada. Medicin-mine: medicina sem o a, traço, eme i, ene e.

Tenente estava irritado com a aparente indiferença do negociador. Mas não podia demonstrar. Ganhava o jogo de nervos quem se mostrasse mais tranquilo. Fingiu então não dar nenhuma importância à afirmação de que a Lisberte tivesse doença grave, nem ter atentado para o nome do remédio soletrado pelo interlocutor: “medicina sem o a, traço, eme i, ene e”.

– Ou o velho fala comigo ou a moça morre de qualquer jeito! – verberou o sequestrador. Do outro lado da linha, o homem impassível cumpria burocraticamente a sua função.

– Uma mensagem gravada pelo Dr. Gotardo, dirigida a você, vai ao ar na sexta-feira, pela rádio difusora de Lucas, exatamente ao meio-dia.

– Não quero saber de conversa mole. Quinhentos mil dólares ou a moça morre!

– Transmitirei a sua proposta. O pai dela ainda não acionou a polícia e já fez um grande saque bancário em dinheiro, segundo estou informado. Mas a resposta somente na sexta-feira, pelo rádio. Controle os nervos até lá para não estragar tudo – encerrou o negociador, desligando o telefone.

A mente do bandido deu voltas no ar. “Que diabo é isso? Será que esse cretino pensa que eu estou com medo? Que papo é esse de controlar os nervos?” Sopesou rapidamente as alternativas: devolver-lhes um “presunto” ou entrar no jogo deles? Refreou os impulsos; esfriou a cabeça. “Se eu abortar a operação ele vai pensar que eu afrouxei. Na verdade, tenho a faca e o queijo. Posso muito bem esperar”. Ali mesmo, no bar defronte ao orelhão, Tenente virou uma dose dupla de rum.

O descaso do negociador, obviamente, não era verdadeiro. Tudo estava calculado. Tudo medido e pesado, com orientação de psicólogos, especialistas em comportamento criminoso. Tudo um grande tabuleiros de xadrez. (Continua na próxima sexta-feira) 

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