OUTRA VEZ A FICHA LIMPA
Rui Martinho Rodrigues*
A lei da ficha limpa volta ao debate.
A sociedade está cansada de corrupção e da criminalidade em geral. Há uma
tendência para o recrudescimento dos meios de repressão ao crime.
Não se deve,
todavia, imaginar que a exacerbação das penas, a multiplicação de tipos penais,
das hipóteses de presunção de culpa, ou a transformação destas da categoria de “relativas”
para a de “absolutas” sejam solução.
O efeito preventivo das sanções, no
que concerne à prevenção primária, voltada para quem nunca transgrediu, tem
eficácia quando existe a certeza da aplicação das penas cominadas na lei penal.
Não há relação entre a severidade da sanção e a eficácia da prevenção primária.
A prevenção secundária, voltada para
quem já delinquiu, é de eficácia baixíssima ou inexistente.
Restringir garantias, flexibilizar
normas para permitir maior eficácia no combate ao crime é um erro. Fragiliza a
condição de quem não transgride, mas pouco ou nenhum alcance tem em face do
delinquente astucioso. Quem planeja o crime encontra formas de burlar a
eficácia da persecução penal. Quem age de boa-fé pode se enredar nas malhas das
leis exageradamente repressivas.
A lei da ficha limpa expressa a justa
indignação em face da impunidade. Mas aplicar pena de restrição de direitos
antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, retirando do réu a
capacidade eleitoral passiva, fere duas garantias constitucionais: cassa o direito
de escolha do eleitor decidir sobre o próprio voto e restringe direito de ser
votado, de quem não foi condenado definitivamente.
Erra ao tenta corrigir a
procrastinação dos processos restringindo direitos do réu, ferido na sua
capacidade eleitoral passiva. Erra por não cominar sanções contra as chicanas e
não exigir a duração razoável dos processos, já positivada em nosso ordenamento
jurídico. Sob o manto da moralização está o desprezo pela soberania do voto popular
e o descrédito elitista dos nossos legisladores e
formadores de opinião.
Outro engano é tentar resolver os
problemas políticos, tais como o deplorável comércio de votos e tantos outros
vícios, transferindo as decisões de natureza representativa para o Judiciário.
Não há mais virtude na toga do que na
política, que é o homem médio representado. Desde a Grécia Antiga grandes
sábios apresentam graves falhas de caráter. É uma contradição reconhecermos
tais falhas e idealizarmos os togados e os doutos em geral como superiores.
Estamos
judicializando a política e, ipso facto,
politizando o judiciário. Juízes falastrões, nas mais altas cortes, francamente
politizados, partidarizando decisões, dividindo os tribunais em bancadas
governistas e oposicionistas demonstram a gravidade do erro.
A lei é falsa até no nome: não é ficha
limpa, mas ficha suja. Esconde o nome sob o pseudônimo para ocultar a violação
da presunção de inocência. Não foi feita por legisladores de pileque, como quer
um dos supremos ministros boquirrotos e partidários. Foi pensada sob a
passionalidade dos torquemadas e a dissimulação dos fariseus.
COMENTÁRIO:
O
Professor Doutor Rui Martinho Rodrigues, Presidente Emérito da ACLJ, é
autoridade absoluta no tema que aborda em seu artigo. Ele é jurista, é sociólogo,
é historicista, é teólogo, é cientista político e filósofo aplicado – além de dominar
a biologia, pela formação superior que tem na área de saúde, que há muitos anos
não exerce. É, portanto, um autêntico polímata, que orgulha a confraria a que pertence.
Porém,
do alto da minha ignorância, às vezes não alcanço o seu pensamento superior,
quando ele fala como um legalista extremado, mais precisamente um formalista
rigoroso, defensor do modelo de república dualista montesquiano, que somente
valoriza os poderes Legislativo e Executivo como cerne democrático.
Rui
acredita que, realmente, neste presidencialismo kafkiano brasileiro, o voto,
secreto e universal, seja mesmo a expressão da consciência popular, e que essa
pretensa voz do povo venha a ser “a voz de Deus” – quando se sabe que a massa
eleitoral é ignara, e que, sistematicamente, é vilipendiada e iludida.
Ele
acredita que os eleitos sejam de fato representantes do povo, porque assim reza
o Sistema, e que o resultado das eleições atendam a um fatal determinismo, de
modo que seus efeitos devam ser aproveitados ou sofridos estoicamente por todos,
em nome de uma pretensa divindade ideológica que atende por Democracia.
Pessoalmente,
eu vou mais fundo: não entendo que metade mais um estejam certos, necessariamente,
nem que dois terços tenham o direito de esmagar o outro terço, elidindo o que este
cria e preferia.
Entendo
que, sendo o cotejo da maioria tão-somente um método de solucionar os impasses
políticos e possibilitar a conclusão definitiva sobre o que se aplicará, isso
não faz do resultado das eleições um dogma absoluto, que não possa ser escrutinado e
eventualmente reformado pelos doutos.
Para
mim, a vida se rege pela mecânica quântica, que se compadece de presuntivas incertezas, não pelo rigor da aritmética. Assim
também a norma jurídica, que pode sempre ser acomodada à realidade caótica aleatoriamente desenhada
pelo fado.
A
norma é um farol a ser mirado, não há negar, e a perspectiva da sanção punitiva aos
infratores é uma lente relevante. "Dura lex
sed lex". Mas creio que na letra da lei o seu intérprete e aplicador deve
sempre presumir a cláusula "rebus sic
stantibus", em presença de cada caso concreto. Por isso se pode ter caixas eletrônicos nas instituições financeiras, capazes de operações muito complexas, enquanto jamais um computador será juiz.
Ademais,
não me parece que se precise levar em conta condenação transitada em julgado
para impedir candidatura, e que o pretenso candidato possa arguir presunção de
inocência quando for impugnado.
A
palavra “candidato” pressupõe “brancura” absoluta, “limpeza” total, qualidade
que não podem ostentar os que não estejam ilibados. Até porque, enquanto o
direito de votar é mesmo indiscutível e inafastável, ser votado é apenas uma
hipotética prerrogativa social, e não um ontológico atributo.
Concordo
com o nosso Prof. Rui quando ele reclama de juízes falastrões, que desbordam do
que se contêm nos processos para manifestar seu pensamento pessoal, político ou ideológico, considerando uma conjuntura estranha ao
objeto da causa, porque “o que não está nos autos, não está no mundo”.
Mas
é preciso lembrar que não se aplicam restrições idênticas a supremos
magistrados, que de todo modo são juízes vogais, que se nada decidem autocraticamente
de forma definitiva, coletivamente são absolutos e dão a última palavra. Para
eles, o mundo todo está nos autos. Esses são deuses "ex-machina", assim constituídos no palco republicano pela própria
norma democrática, que o próprio Prof. Rui tanto incensa e defende.
Reginaldo
Vasconcelos
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