sexta-feira, 19 de agosto de 2016

CONTO - Orelhas Brancas (AF)


Orelhas Brancas
Altino Farias*


Tinha de viajar a lugar distante e desconhecido por conta do trabalho. E assim o fez. Antes, porém, os preparativos de praxe: antecipação do pagamento de contas, reorganização da agenda, recomendações domésticas.

Chegando ao destino, estranhou tudo. A estética contrariava a lógica, com construções angulosamente obtusas, recortadas, aparentemente antifuncionais. Veículos também seguiam a mesma tendência, com formas inusitadas, feias, desarmônicas. O desenho das ruas e tráfego de pessoas e automóveis, um caos.

Ao chegar ao hotel recebeu a recomendação de que deveria adquirir certo produto para ser adicionado à água do banho. Acondicionado num balde de dezoito litros, era uma espécie de geléia, que ele questionou ser mesmo necessário.

 Para que serve isso? Não é muito? Vou ficar pouco tempo...  perguntou à pessoa que o recepcionara.

 Suas orelhas já estão brancas, já reparou?  respondeu o habitante do lugar. 

 Orelhas brancas? Mas o que é isso? O que acontece aqui?  inqueriu constatando que suas orelhas, de fato, estavam embranquecidas.

 É por causa do cigarro  respondeu seu interlocutor.

 Cigarro? Mas eu nem fumo...

 E nem precisa. Toda a fumaça de cigarro do mundo vem para cá e aqui se acumula, não sabia? Por isso usamos essa geleia para limpeza do corpo, senão...

 Meu Deus, onde vim parar!?

Horrorizado, tomou o primeiro banho esfregando freneticamente a pele com a geleia do balde. Estava confuso, quase desesperado. Tudo à sua volta parecia estar em completa desarmonia estética, estrutural, funcional e mais o que fosse.

O negócio que fora resolver não dera certo e a volta deveria ser abreviada. Alívio! Mas não havia voos para sair dali antes de cinco dias. Desespero! E as orelhas embranquecendo, embranquecendo... 

Confuso, tentou, em vão, contato com os seus para avisar o que ocorria. Não obteve êxito. Conexões telefônicas e internéticas em pane. Aos poucos começou a sentir o corpo indolente, depois, inerte... E nunca mais se soube dele. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário