A ATUALIDADE DA DEMOCRACIA
Rui Martinho Rodrigues*
A dimensão territorial e demográfica é
obstáculo para a democracia? Na Grécia antiga, em cidades pequenas, excluídos menores,
mulheres, estrangeiros e escravos, reuniam-se os cidadãos e decidiam problemas
comuns. Valia mais a oratória que a razoabilidade.
A democracia era direta, mas passou a
ser indireta. Não reúne a população para decidir. Nomeiam-se representantes
para este fim, os quais legislam com fundamento em juízo de valor, que têm
natureza política. A função legislativa, por ser fundada em valores, não exige
concurso público. A conformidade das condutas em relação às leis é juízo de realidade.
Exige concurso ou notório saber jurídico, por ser técnico. Cabe ao judiciário.
Na política, representantes
distanciam-se dos representados. Mas a solução não é transferir a atividade
legiferante para a magistratura. A falta de representatividade do parlamento
está no particularismo de interesses, degenerando em desvio de finalidade. A representação
de valores, contudo, permanece: é a conexão eleitoral. Deputados não votam
contra os valores populares; não descriminalizaram o aborto; não legislaram
sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. Agiram assim, mas para não perder
votos. Isso é democracia; é prevalência da vontade popular; é representatividade.
A infidelidade está nos interesses, não nos valores. Interesses são complexos. Nem
todos sabem como defendê-los. Valores são convicções, nivelam a todos pelo não
saber socrático: só sei que nada sei, e nem bem disso sei.
Não devemos confundir os juízos de fato,
amparados na ciência, com as convicções axiológicas. Por isso os doutos não são
mais sábios que o homem médio. Intelectuais erram muito. Técnicos altamente qualificados,
operando nas bolsas de valores, podem seguir irracionalmente o efeito manada. A
comunidade científica nunca entendeu uma ideia radicalmente inovadora. Galileu Galilei não conseguiu se fazer entender pelos mestres. Giordano Bruno acabou na
fogueira. Pasteur por pouco não foi trancafiado num hospício. Freud foi expulso
do Conselho de Medicina. As bobagens lombrosianas seduziram os doutos.
A história da ciência é um cemitério
de equívocos. Max Planck disse: a Física só avança quando morre uma geração de
físicos. Acrescente-se: porque não conseguem entender uma ideia radicalmente
nova. A racionalidade não impera de modo indiscutível. O PT cometeu graves
erros, sendo a agremiação dos intelectuais e dos clérigos, demonstrando que nem
o intelectualismo nem o moralismo farisaico sinalizam superioridade moral ou
clarividência.
Intelectuais tendem a agir como
rebanho. Seguem o modelo do dia: realismo, romantismo, modernismo. O
engajamento afasta o senso crítico, enseja erros grosseiros, como as doutrinas
citadas. Acumular no STF as funções judicante e legiferante é um erro. Os magistrados
têm a mesma falibilidade dos parlamentares, sem ter a representação política. Democracia
não é só votar. É também segurança jurídica. O povo não entende as questões
técnicas, tais como o modelo tributário ou matriz energética. Mas precisa saber
o que é permitido ou proibido e qual é a pena para o proibido: eis o coração da
democracia.
Quando o STF muda o significado
indiscutível do que está escrito, não temos segurança jurídica. O direito
positivo diz com toda clareza: é ilegítimo prender antes do trânsito em julgado
de sentença condenatória. Fere as garantias fundamentais que o STF diga o
contrário, salvo quando presentes os pressupostos da prisão cautelar.
COMENTÁRIO:
O Professor Martinho sabe tudo, porque tem
grande conhecimento acumulado. Leu dos gregos antigos aos alemães
contemporâneos, conhece os cânones teológicos e a lógica dos ideólogos
modernos. Como jurista, domina o ordenamento jurídico brasileiro e os
princípios gerais do Direito, que são universais.
Ademais, tem ele uma capacidade excepcional
de memorizar conceitos e de analisá-los profundamente, cotejá-los uns com os
outros, conjuminando o pensamento universal, para fazer a síntese mais lógica
de como as coisas são, e de como deveriam ser.
Está, portanto, perfeitamente correto nas
explanações que faz em seus artigos, inclusive este e o anterior, que também
comentei, ambos sobre o poder político, sobre o estado, sobre a república,
sobre a democracia, sobre a moral e a ética públicas.
Então, não discordo dele, mas, às vezes, daquilo que
ele estudou e que preconiza, porque o
meu raciocínio pessoal é excêntrico e exótico. Não parte das bases
estabelecidas pelos grandes pensadores, pacificadas pelo pensamento acadêmico,
aceitas pelo establishment ocidental,
consagradas nos códigos normativos gerais, bem como fixadas nas leis positivadas.
Por exemplo, há definições filosóficas
complexas de ética e de moral, justificando compêndios a respeito, formando expertos
e professores na matéria. Mas, no meu entender, moral e ética têm a mesma
acepção, com uma única variação semântica, já que esta última, a ética, tem
cunho objetivo, enquanto a moral reside na subjetividade.
Para mim, é imoral o que está inadequado ao
bom relacionamento social, conforme subliminarmente admitido ou consensuado como
pertencente ao âmbito dos mais nobres sentimentos, em oposição aos institutos
bestiais do ser humano. Costuma ter forte relação com as profissões religiosas
e com o espiritualismo em geral.
Antiético, entretanto, é tudo o que quebra
compromissos firmados, tácita ou expressamente, implícita ou explicitamente, e por
isso independe de opiniões, mas obedece a uma escala hierárquica de importância,
já que os pactos sociais se sobrepõem como as camadas das cebolas. E as normas
jurídicas não fogem desse conceito, como suprema preitesia social.
Por exemplo, há uma tribo polinésia cuja
antiga tradição rezava, de maneira aceita e pacífica, que o primogênito adulto assassinasse
o velho pai, para assumir a liderança da família. Essa conduta, para nós, seria
amoral, e, por isso mesmo, foi abandonada, por influência civilizatória. Mas não se pode dizer daqui que essa velha
prática fosse aética, porque fazia parte do que se convencionou naquela especifica
etnia, que a adotou durante milênios.
Faz-se também um grande culto aos chamados “juízos
de valor”, em oposição aos “juízos de realidade”, sem se determinar em que
postulados tais valores se originam. Ora, o valor advém do patrimônio afetivo e
estético das pessoas, que se compadecem de uma gama de aspectos da vida, com os
quais se identificam e que passam a valorar positivamente – pela genética, pela
gestáltica, por influência interpessoal, pela experiência grada, por mera
convivência.
Caso os avós italianos de Jorge Mário Bergoglio
tivessem emigrado para o Nepal, e lá ele houvesse nascido e se criado, ele
teria hoje uma moral diversa, um conjunto de valores diferentes, uma ética obediente
a outras normas, estranhas àquelas que defende como Papa Francisco, seguindo os
preceitos lamaistas do budismo, naquela hipótese do exemplo – embora saibamos
que tanto ele quanto o Dalai Lama, e os seus atuais seguidores recíprocos,
coincidam no sentimento pacifista e no mais ecumênico irenismo.
Por fim, entendo que os cultos e os doutos sejam
mais aptos ao exercício do poder porque têm mais informações sobre a senda
histórica dos povos, sobre os mecanismos sociais bem sucedidos, sobre os
acertos filosóficos, sobre as erronias abismais dos ideólogos notórios, que os
desinformados ainda pervagam. Nada supera a isotimia, que forma as “justas elites”,
com os “meritórios privilégios” que a meritocracia lhes garante.
Os que dominam o saber e as ciências erram,
sim, porque adotam o método evolutivo de tentativa e erro, porém acertam muito
mais, de modo que o saldo é positivo. Foram eles que desenvolveram o automóvel
e o avião, o antibiótico e o telefone, o anticoncepcional e o viagra, a energia
elétrica e a anestesia, a televisão e a informática, para referir apenas a sua
produção de maior apelo popular.
Reginaldo Vasconcelos
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