AS NUVENS RECICLADAS
Assis Martins*
Cala-te, meu triste coração, e cessa de lamentar-te,
pois, por trás das NUVENS negras, o Sol continua a brilhar. (H.W;
LONG-FELLOW – poeta estadunidense. YPortland-Maine,
27.02.1807; †Cambridge-Mass., 24.03.1882).
Amigo diz
que aprecia muito minhas crônicas, mas acha que elas têm sempre um final
reticente. Ora, meu prezado, o propósito é justamente esse – conceder ao leitor
a oportunidade de refletir sobre as intrincadas relações pessoais e impor o
final que lhe aprouver.
Meu
interesse é saborear os episódios do dia a dia na grandeza da sua simplicidade.
Para sentir a fluidez da vida, não há necessidade de acontecimentos
espetaculares, histórias dramáticas com finais apoteóticos.
Situações
de todos os matizes surgem continuamente – seja nas filas dos ônibus, botequins, salões de
beleza ou na conversa de barbeiros mentirosos (será redundância?). Basta abrir
a janela para ver as contradições da interação humana.
Em toda
geração, aparecem tipos pitorescos que marcam e se incorporam ao folclore das
cidades. Na minha, houve a Vassoura, o Besourão, o Burra-Preta e
muitos outros. O destaque, porém, é uma figura que eu vinha observando.
O cenário é
o mais paradisíaco possível: amplo horizonte azul, uma lagoa de águas mansas
que refletem quietude, coqueiros ondeantes, convidando à meditação, e, compondo
essa imagem de calendário, nuvens fugidias disputam o seu lugar no infinito.
Essa imagem
é belíssima para quem passa ao largo e em velocidade. Àquele que se aproxima, a
realidade é outra. Na vegetação rasteira das margens, as pessoas jogam toda espécie
de lixo, propiciando mau cheiro, sem contar com os inúmeros bueiros que ali
deságuam.
No meio desse
cenário, afinal, um toque de humanidade. Um mendigo é visto refestelado numa
cadeira velha à sombra de um coqueiro, com um olhar perdido, próprio dos
insanos, porém, com a postura altiva de um nobre arruinado.
Que
impressões e lembranças passam em sua mente? A sua figura nos remete àqueles filósofos
estoicos, que buscavam na contemplação da natureza os infindáveis mistérios do
destino humano.
Muitas são
as opiniões a respeito da sua origem. Um catador de lixo emitiu a sua: – parece
que esse cara é lá da banda do Acaraú, tinha terrenos e umas cabecinhas de
gado, acabou perdendo tudo no jogo.
O
sorveteiro arriscou: – ... conversa! um compadre meu, que compra
carneiro no Tauá, cansou de ver ele na feira grande. Parece que foi desavença
com mulher e aí descontrolou o juízo lá dele!
Nesse
momento, foi aparteado: – o jeitão dele é de quem já foi grã-fino; a
gente vê logo pelo modo como cruza as pernas.
Tantas
conversas, ditas com segurança, aumentaram minha curiosidade e resolvi ver bem
de perto o homem que, na minha imaginação, já era um sério candidato a fazer
parte do nosso folclore.
Ele tinha
mesmo uma pose marcial e imponente naquele resto de cadeira; às vezes erguia a
vista para o céu e, com um pedaço de carvão, fazia desenhos toscos.
Era como se
cada nuvem servisse de modelo para aquela fauna fantástica; aqui um arremedo de
pavão, mais adiante, seria talvez um tigre, e continuava, ininterruptamente,
reciclando os fiapos de nuvens ao sabor das suas ilusões.
Agora, uma
decepção para mim e para o amigo reclamante dos finais reticentes, citado no
início: sumiu tão de inopino como aparecera nas margens da lagoa. Um mecânico
já me disse que viu um cara muito parecido com ele na fila do Bolsa-Família, lá
perto da sua casa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário