Assis Martins*
(Direto de
Bertioga – São Paulo)
Não há terra, por horrível que seja, que
não tenha sobre si um céu resplandecente. (ANTÔNIO PARISI Y GUIJARRO.
Político e jornalista. YValência, 29.03.1815 – †Madrid, 05.11.1872).
Domingo de céu limpo, lá estava eu
sentado na areia da praia do Futuro, observando o movimento das ondas e da
moçada jovem (e também a da terceira idade). Forte sol de janeiro, um vento
fino e areento nos olhos, os raios ultravioleta trabalhando dobrado nos couros
dos turistas branquelos.
Ao longe, avistei um ponto que se
movia lentamente pela areia da praia, na minha direção; no que me distraí um
pouco, arrumando os meus pertences, fui surpreendido por uma voz vacilante:
– Moço, dê uma ajuda...
– Minha vó, como a senhora consegue
suportar, descalça, essa quentura?
– Tô acostumada, meu filho. Eu nasci
aqui nessa beira de mar, moro sozinha num barraco lá perto do poço da Draga.
Não conheci pai nem mãe, e desde pequena fui criada por um tio meu, um
jangadeiro. Ele morreu afogado lá pras bandas do Rio de Janeiro, onde ia
aparecer num filme, mas já faz tanto tempo[...].
* * *
14 de setembro de 1941, em plena
vigência do Estado Novo, quatro pescadores partiram de Fortaleza para o Rio de
Janeiro, a bordo da jangada São Pedro, numa aventura que ficou na história.
Eram eles: Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manoel
Pereira da Silva (Manoel Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo).
A jangada chegou à baía da Guanabara
no dia 15 de novembro e os jangadeiros foram recebidos festivamente pelo povo,
aclamados pela imprensa e logo tiveram uma audiência com o presidente Getúlio
Vargas, quando pediram melhores condições de trabalho e assistência para os
pescadores.
Na realidade, os pescadores do Ceará
viviam em estado de total abandono. Imagine-se que metade do produto da pesca
ficava com os proprietários das embarcações. O pedido surtiu efeitos, pois, um
mês depois da chegada da jangada ao Rio de Janeiro, saiu em 18 de dezembro de
1941 o Decreto-Lei nº 3832, que deu a eles direitos trabalhistas, inclusive
aposentadoria.
Foi um feito incomum aquela
arriscada jornada. Eles percorreram mais de 2.000 quilômetros, sem bússola,
cartas náuticas ou instrumentos sofisticados. Só levavam o conhecimento
prático, coragem e muita fé em Deus. A aventura repercutiu até na imprensa
ianque, com a revista Time fazendo
ampla reportagem, bastante comentada.
A política pan-americana do
presidente Franklin Delano Roosevelt tinha dado ao cineasta Orson Welles a
incumbência de filmar alguns episódios no Brasil, entre eles o carnaval
carioca. Ele, então, resolveu incluir a proeza dos jangadeiros cearenses na
filmagem.
Após toma cenas do carnaval, a
equipe chegou a Fortaleza em fevereiro de 1942 e, em março, os jangadeiros
seguiram de avião para o Rio, onde fariam ainda o seguinte roteiro:
participariam de algumas cenas carnavalescas ao lado de Grande Otelo, da
despedida no aeroporto e, o principal, a reconstituição da chegada deles à baía
da Guanabara.
O destino, entretanto, deu uma
guinada no roteiro. Na filmagem na Barra da Tijuca, em 19 de maio de 1942, a
jangada, que era rebocada por uma lancha, virou e os quatro tripulantes foram
lançados ao mar agitado. Três se salvaram, mas Jacaré desapareceu.
Welles voltou a Fortaleza e ainda
rodou nas areias do Mucuripe o restante do filme, com um irmão de Jacaré,
Isidro, como substituto. Correm muitas versões sobre o paradeiro do filme.
Alguns dizem que a censura do Estado Novo jogou muita coisa no mar, ao passo
que outros defendem o argumento de que o próprio estúdio RKO extraviou algumas
cenas.
* * *
Entretanto,
o fato é que estou, nos
dias atuais, à frente de uma velhinha cheia de calos, também na alma, relembrando
esses fatos que, aos poucos, vão sendo esquecidos pelo povo, tão avesso à
preservação da nossa memória.
É
Brasil?
It’s All True é o título da película.
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