O REINO DA
BAGUNÇÔNIA
Rui Martinho Rodrigues*
Era um reino feliz, tropical e bonito por natureza. Tinha um povo
cordial, tolerante com os transgressores da lei. Nada abalava a tranquilidade
daquele país. Dezenas de milhares de assassinatos, serviços públicos de má
qualidade, contas públicas em frangalhos paralelamente a elevada carga
tributária e a falta de investimentos públicos, famílias despejadas de suas
casas por organizações criminosas e impunidade nada abalava a felicidade do
“homem cordial” daquele país, acostumado a conviver com as dificuldades
apelando para o “jeitinho nacional”.
A Bagunçônia tinha leis escritas. Sua constituição era analítica, programática
e havida como rígida, por opor obstáculos formais às emendas e reformas do seu
próprio texto, mas era pródiga em remendos. Nela os princípios foram
positivados. O Reino gostava de seguir as modas vindas do estrangeiro e a
tendência das constituições atuais é essa.
A Corte Suprema podia “deitar e rolar” com base na plasticidade dos
princípios, disse um dos seus integrantes. Só tinha que fundamentar a
criatividade das interpretações, podendo, sem muitos escrúpulos, “fundamentar”
tudo. Os seus juízes eram intelectuais ungidos, da descrição de Thomas Sowell
(1930 – vivo) para os que se acham sábios, porque armados de um saber
indubitavelmente verdadeiro, e virtuosos, porque lutam por “um mundo melhor”,
sem esquecer interesses pessoais e familiares, ao lado de conveniências
partidárias rendosas e ideologicamente reconfortantes. Ninguém é besta na
Bagunçônia.
A nobreza gozava de impunidade, principalmente para os crimes de
colarinho branco. A plebe bandida também usufruía de privilégios, podendo comandar
o crime até de dentro dos presídios e perambular com armas de guerra pelas ruas.
A Bagunçônia era a terra dos milagres. A arrecadação tributária
crescia e a dívida pública se multiplicava sem que houvesse investimento
público em escala correspondente. Periodicamente o milagre falhava. Havia
crise. Então os “malvados” vinham sanear as finanças. Os “bonzinhos” criticavam
a dureza impiedosa da austeridade e tudo começava outra vez. A cordialidade
remunerada da imprensa e a solidariedade dos intelectuais ungidos reforçavam a
felicidade esperançosa do país do futuro, enquanto cevava corporações poderosas.
Um dia as novas tecnologias quebraram o monopólio da desinformação.
A mentira foi democratizada. Todos puderam desinformar e desmascarar uns aos
outros. O “homem cordial” perdeu a cordialidade. Houve polarização. Ânimos
exacerbados. Grosseria. Intolerância. Uns não queriam mais a corrupção da
nobreza, a criminalidade cruenta da plebe nem a apologia da licenciosidade no
campo dos costumes. Outros não toleravam os pronunciamentos da Plebe nas redes
sociais nem queriam perder o monopólio das manifestações de rua.
Repudiavam a
incidência das leis penais sobre a elite política, embora propugnassem pelo
mais severo punitivismo para com a elite econômica; indignavam-se com o pagamento
dos juros da dívida que haviam contraído. Odiavam a moralidade tradicional,
desqualificando-a como preconceito. O espírito crítico, que tanto haviam
praticado, agora exercido pelo outro nas redes sociais, é objeto do mais
profundo ódio, sentimento atribuído ao outro.
A Bagunçonia continuará sendo o que sempre foi? Terra do “homem
cordial” que tolera corrupção endêmica, assassinatos em escala de guerra,
serviços públicos da má qualidade com tributos elevadíssimos? O anúncio do
pacto entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo reflete a
preocupação diante desta encruzilhada.
Porto Alegre, 14/10/19.
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