O PARAÍSO DA DÚVIDA
Rui Martinho Rodrigues*
No meio forense a expressão “paraíso dos caloteiros” é o modo
pejorativo de aludir à dificuldade, no ordenamento jurídico brasileiro, que os
credores enfrentam para fazer valer os seus direitos. A dúvida espreita. A incerteza
chegou ao processual penal.
O STF, legislando positivamente (criando lei), decidiu que o rito
processual penal deve adotar procedimentos não previstos em lei; deve, ao
arrepio da lei, distinguir entre réus, tratando desigualmente pessoas em situação
igual; deve reconhecer nulidade sem prejuízo para as partes.
O STF anulou uma sentença alegando que os réus que colaboraram com
o Ministério Público apresentaram o memorial das alegações finais no mesmo
prazo dado a quem não colaborou. Assim, os réus colaboradores foram equiparados
aos titulares da persecução penal.
Explicando: a defesa deve falar depois da acusação. Acusador é quem
apresenta a peça acusatória e tem a iniciativa de outros procedimentos
concernentes ao andamento do processo. Réus colaboradores não apresentam a
acusação, apenas fornecem informações que o Ministério Público (MP) poderá usar
na peça acusatória, se antes promover alguma produção de prova.
Informações prestadas pelos réus colaboradores não têm valor
probante. O STF, porém, equiparou os réus colaboradores ao MP. Este sim, deve
falar antes dos réus. Decretou assim a desequiparação entre réus, criando uma
desigualdade injustificável; instituiu um procedimento não previsto em lei no
âmbito do processual penal. A mais alta corte legislou positivamente mais uma
vez. O STF só pode legislar negativamente, excluindo do ordenamento jurídico
normas inconstitucionais.
Já não sabemos o que é conforme a lei. Mas continua prevalecendo a
presunção segundo a qual todos conhecem a lei, sendo impossível alegar o seu
desconhecimento. Isso será mudado? Outra dúvida diz respeito ao momento da preclusão
temporal (limite da oportunidade de apresentar nova prova ou contraprova).
Acatar a tese de que a defesa dos réus que não colaboraram deve falar depois
dos colaboradores é o reconhecer que há prejuízo para a defesa.
A preclusão se dá antes das alegações finais. Os réus colaboradores
não podem apresentar novas provas. A peça acusatória do MP já é do conhecimento
das partes quando das alegações finais. Não há prejuízo nem nulidade. O STF,
porém, acolheu a tese da nulidade. Está dizendo que houve ou poderia haver
prejuízo para a defesa, admitindo novas provas. Não temos preclusão ou temos
nulidade sem prejuízo?
O STF decidiu, com ineditismo, modular o alcance de um habeas
corpus. Poderá esclarecer algumas dúvidas. Isto é: o Pretório Excelso continuará
legislando. Talvez esclareça se a decisão terá efeito ex tunc (desde o início, mas qual início?) ou ex nunc (desde agora, daqui para frente).
Haverá alguma absolvição? Se houve prejuízo poderá, sim, haver
absolvição. Neste caso, os bilhões de reais devolvidos pelos condenados como
corruptos serão restituídos aos inocentados? Ou os inocentados sofrerão prejuízo?
O Estado terá obrigação de indenizar os danos morais e materiais?
Não temos leis, mas entendimentos jurisprudenciais. A obrigação de
fundamentar decisões não representa segurança jurídica. Pode-se “fundamentar”
qualquer coisa quando se tem a prerrogativa de errar por último. Somos o
paraíso da dúvida jurídica (insegurança). O poder do STF tornou-se ilimitado.
Surge então uma dúvida política: pode haver poder ilimitado na democracia? O
ativismo judicial, como nova edição revista e ampliada do tenentismo, agora
envergando a toga, é democrático?
Porto Alegre, 02/10/19.
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