NÃO-NÃO-NÃO-NÃO,
NÃO BRINCO MAIS CARNAVAL
Reginaldo Vasconcelos*
“Não-não-não-não
/ Não brinco mais carnaval / Cansei de desmaiar no salão” (Não quero mais andar na contramão – Música de Raul
Seixas)
“Folião de raça / bebendo o
quinto copo de cachaça (...) Cantando A
jardineira, oi / A jardineira”. (Camisa Amarela – Música de Ary
Barroso).
Meu foco na vida civil era conquistar trabalho, emprego, renda,
para garantir e manter as conquistas amorosas. Um carro, algum trocado, talão
de cheques para pré-datar, cada noite de sábado era uma criança.
“Ó jardineira porque estás tão
triste / Mas o que foi que te aconteceu / Foi a camélia que caiu do
galho / Deu dois suspiros e depois morreu” (Música
de Benedito Lacerda-Humberto Porto)
Depois, já de vivenda preenchida com moça bonita e fraldas no varal,
o carnaval era sagrado. Não me interessava a conjuntura internacional nem a
política de Brasília. Era abrir um negócio, prestar concurso, cursar a faculdade, e, uma
vez por ano, declarar armistício na luta pela vida, para ceder à irreverência,
fazer o mela-mela, beijar as namoradas.
Ei, você aí! / Me dá um dinheiro
aí! / Me dá um dinheiro aí! (Música de Moacir Franco)
A infância – na família, no colégio e nas ruas – fora um simulacro
cruel do que seriam as lutas concorrenciais da vida adulta – um desafio de
sobrevivência moral na forja do caráter, no mundo rigoroso dos mais velhos e no
universo hostil da molecagem. Passada a puberdade, na mocidade tudo era
superação e valentia juvenil.
“Mamãe eu quero / Mamãe eu quero /
Mamãe eu quero mamar” (Música de Jararaca e
Vicente Paiva)
A Rússia vivia o seu apogeu no socialismo real, em busca do
eldorado comunista – quimérico e utópico; Fidel Castro reinava em sua ilha;
judeus e árabes guerreavam por seis dias, se odiando por milênios.
“Mamãe, eu vou / Ser soldado de
Israel / Não tem água no cantil / Mas tem mulher no quartel” (Música de Luiz Antônio).
O “grande irmão do norte” alternava presidentes pela via
democrática, e mandava a sua juventude matar e morrer em suas guerras pelo
mundo. E eu com isso?
“Era um garoto / que como eu /
amava Beatles e Rolling Stones / (...) Mandado
foi ao Vietnã / Lutar com vietcongs”. (C'era un ragazzo
che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, Música de Franco Migliacci e
Mauro Lusini).
No Brasil, os políticos, na sua cachorrada de sempre, a se aliarem
e se traírem, enquanto eu, sem vocação para herói ou mártir, só queria subir na
vida honestamente, e, uma vez por ano, brincar o carnaval. Durante o ano todo o
meu nome era trabalho, e em fevereiro o meu lema era “viva o Zé Pereira!”.
“Viva o Zé Pereira / Que a ninguém
faz mal / Viva a pagodeira / Nos dias de Carnaval” (Da
quadrilha francesa Les Pompiers de Nanterre, de Philibert)
Até que a Administração Pública do País foi acometida por uma
doença autoimune de cunho ideológico, mas de prática anarquista e iconoclasta,
em que a degradação moral crônica, até na vida financeira nacional, subjacente à
sociedade desde a colonização, se tornou aguda e sistêmica.
“Olha a cabeleira do Zezé / Será
que ele é? / Será que ele é?” (Música de João Roberto
Kelli e Roberto Faissal)
Em nome da plena liberdade de mão única, a ditadura da “pós-verdade”
se instalou, para obrigar a cidadania à naturalização do irreal, em prol do mais
desvairado hedonismo, por meio de modernosas concepções disparatadas.
“O teu cabelo não nega mulata /
Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega mulata / Mulata eu quero
o teu amor”. (Música de Lamartine Babo)
A “inverdade desejada” pelo novo establishment vigora contra as mais legítimas posturas sociais e
pulsões da alma humana, e até em flagrantes afrontas biológicas, fazendo
exsurgirem presunções descabidas de direitos, implantando ainda uma rigorosa “pedagogia
verbológica”.
“Se a polícia por isso me prender
/ Mas na última hora me soltar / Eu pego o saca saca saca rolha / Ninguém me
agarra ninguém me agarra”. (As águas vão rolar - Música de Zé
da Zilda)
Sobreveio ainda o jugo severo dos preceitos do “politicamente
correto”, que proíbem os indivíduos de fazer ou não fazer, de gostar ou
desgostar daquilo de que eventualmente gostem ou desgostem, censurando e
criminalizando inclusive manifestações jocosas de carinho e a liberdade de expressão dos humoristas.
“Linda morena, morena / Morena que
me faz penar / A lua cheia que tanto brilha / Não brilha tanto quanto o teu
olhar”. (Música de Lamartine Babo)
Segundo a nova ordem, há que se apreciar forçosamente o azul e o
amarelo, ou se calar a esse respeito. A sociedade dividida em grupos hipersensibilizados
pela mídia, fazendo transbordarem os seus caprichos cavilosos para o látego da
legislação e da Justiça.
“Eu quero é botar meu bloco na
rua / Brincar, botar pra gemer / Eu quero é botar meu bloco na rua /
Gingar, pra dar e vender”. (Música de Sérgio Sampaio)
Então, eu fiz o enterro de Momo em meu espírito, que não pode haver
alegria genuína e organizada onde tudo é anarquicamente obrigatório ou proibido,
vigorando o preconceito maior contra o preconceito menor, a desigualdade total
contra a desigualdade normal, a injustiça mais grave contra a injustiça
presumida.
“A gente se embala / Se embora se
embola / Só para na porta da igreja / A gente se olha / Se beija se molha / De
chuva, suor e cerveja”. (Música de Caetano Veloso)
É verdade que contra tudo isso as forças anabólicas da sociedade e
a maioria do povo conseguiram ministrar à República um remédio radical, cujos efeitos colaterais
quimioterápicos ainda começam a ser sofridos, sem que se tenha certeza de que
consigam levar a uma convalescença segura o combalido paciente.
“Eu vejo as pernas de louça /
Da moça que passa e não posso pegar / Tô me guardando pra quando o carnaval
chegar”. (Música de Chico Buarque de Holanda)
Fernandão O "Rei Fininho" da Embaixada da Cachaça, falecido em 2015 |
Enfim, se e quando o sol da autêntica liberdade voltar a brilhar no opalino céu da ordem e do progresso nacionais, exumarei o rei da alegria, lhe entregarei a chave da minha alma, e o reabilitarei na minha vida severina delongada.
COMENTÁRIO
Parabéns, caro
amigo. Belíssima peça, essa crônica “Não Brinco Mais Carnaval”.
Geraldo Jesuino.
Parabéns, caro amigo. Belíssima peça.
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