DIGNIDADE
Reginaldo Vasconcelos*
O primeiro borzoi que apareceu em Fortaleza foi o Asper, que caiu
na mão de um corretor de cães de raça, o qual, sabendo que eu seria potencial
interessado, convocou-me. Fui ver, era lindo, embora maltratado. Combalido, mas
mantendo o olhar altivo de quem por muitos séculos guarneceu a curul dos
czares. Comprei-o barato.
Importado da Europa por algum excêntrico, o enorme galgo russo
tinha grande qualidade genética, quase um metro na cernelha, pelo longo e
sedoso, na coloração mais desejável: branco e champanhe.
Passara pelos jardins da Aldeota, por tapetes de mansões,
pertencera a um elenco de colunáveis, que, enfim, cada um por vez,
transferira-o a outro, não o sabendo criar de maneira adequada. Aquela raça
exótica requer cuidados especiais, principalmente ginástica diária, alimentação
própria, companhia humana em tempo integral, sem o que os animais ficam
artríticos e estressados. Em minha casa o Asper fazia os exercícios
necessários, tinha a alimentação adequada, melhorou das juntas, recuperou a
pelagem, recobrou o seu ar imperial.
Era autista e folgado. Demorava-se no sofá, mas gostava de
estirar-se sobre a cama que encontrasse, de preferência com lençóis frescos e
colcha bem passada. Habilidoso com as patas dianteiras, ao primeiro descuido
abria o forno ou a geladeira, em busca de algum rega-bofe, como fosse o dono da
casa. Indiferente a outros cães, ao nosso gato persa, ao povo em geral, tinha
alguma discreta preferência por mulheres, mormente as mais belas, às quais se
dignava recostar às vezes, requerendo carinho na cabeçorra acarneirada, focinho
de quase dois palmos.
E tinha lá as suas intolerâncias sociais: não suportava
maltrapilhos, latia para entregadores, não confiava em serviçais, estranhava
fardados. Viveu conosco vários anos, enfeitou os passeios das moças, posou para
muitas fotos em família – grande modelo que era – até que um dia foi finado.
Passados mais de vinte anos, no foyer de um teatro, noite de estreia de uma peça, encontro Tarcísio Tavares, o decano dos publicitários
cearenses. Foi-me oportuno agradecer-lhe, mesmo a destempo, a deferência que
tivera comigo, quando me iniciava na imprensa ainda menino e fui instá-lo por
um pequeno patrocínio, das muitas verbas publicitárias que ele comandava.
Lembrei o carinho com que então fui acatado – ele não lembrava mais, mas riu-se
feliz da minha lembrança.
E estando ele entre os que me disseram constar da lista de
ex-proprietários daquele mesmo borzoi, consultei-o a respeito. Era verdade: o
cão lhe pertenceu, tendo ele adquirido o animal de uma linda mulher alemã cujo
marido desertara da família e caíra no mundo. Também não conseguiu criá-lo, até
porque não se entendia com o cachorro, que só atendia em inglês ou alemão.
Entregou-o, por seu turno, àquele corretor que me o vendeu.
Ficou comovido com mais esse resgate do passado. Fiquei de lhe
mostrar fotos do Asper. Brindamos com uísque, olhos marejados. Momento de
enlevo. Percebemos ali, nós dois é que havíamos pertencido ao mesmo cão. Como a
vida é bela às vezes!
Reginaldo
Vasconcelos, in O Passado Não Passa – Venus Gráfica e Editora – 2005
NOTA DO EDITOR
O cão Asper, que morreu no
final da década de 70, fora um presente do milionário paulista Matias Machline, então representante da Sharp no Brasil, concedido ao exportador francês Paul Mattei, radicado
no Ceará, que visitava os seus canis de raças exóticas em São Paulo e se
mostrara impressionado com a beleza dos borsois.
Paul Mattei estava à deriva
no barco denominado Denise, que, no
final da década de 50, navegando entre a Europa e a América Central, bateu o
motor em alto-mar e veio naufragar na enseada do Mucuripe.
Amparado por outros
franceses que já moravam em Fortaleza, Paul Mattei iniciou a pesca e a
exportação de lagostas cearenses. Prosperou, envelheceu e morreu nos anos 80. Foi o primeiro proprietário do referido galgo russo.
Em 1990, com a abertura de
mercado, a Sharp (do Brasil) mergulhou em uma longa crise. Em 1994, Matias
Machline morreu em um acidente de helicóptero.
Tarcísio Tavares, o querido
Tê-Tê, faleceu em 2011 na Cidade de Fortaleza, de um derrame cerebral, aos 78
anos. Ele chegou a conhecer essa crônica e a apreciar fotos do Asper.
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