CURVA HISTÓRICA
DA VIOLÊNCIA
Reginaldo Vasconcelos*
Quem morasse quatrocentos anos atrás no local
onde moramos, seja no Montese ou na Aldeota, na Parquelândia ou na Água Fria, enfim, em qualquer bairro da
cidade em que vivemos, teria que ter armas em casa e cães em seus terreiros. Naquele tempo
tudo era mato, de modo que era mister se prevenir contra índios e onças. Foi
por causa desse binômio feroz que, de lá para cá, apareceu no Brasil-central o
nosso único cão de guarda, o fila brasileiro, resultante do cruzamento de
mastins importados pelos fazendeiros de Goiás.
Não há nisso nenhuma fantasia. Não se trata de
desenho-animado, nem de “História de Trancoso”. Havia, sim, índios e onças há bem
pouco tempo por aqui, exatamente onde estamos agora, por incrível que pareça.
Tempo longo para a vida de um homem; nestante para a civilização. Há papéis,
obras de arte e edifícios, pelas cidades da Ásia e da Europa, que remontam
àquela época e até a outras, muitos anos antes dela.
ANTANHO
Mas no século
17 nós ainda não tínhamos fazendeiros, nem cães de raça, neste então chamado
“Siará Grande”. Talvez por isso mesmo ninguém morasse por aqui, além dos
soldados holandeses, alguns dos quais ficaram sitiados pelos índios dentro do
Forte Shoonenborch, comendo os próprios cavalos, até que pudessem entrar em
seus navios e voltar para a Holanda.
Por mais dois ou três séculos não se podia
ainda morar nos sertões, nem onde hoje é a Grande Fortaleza, sem estar
prevenido contra feras e malfeitores em geral – depois dos índios, os
cangaceiros, descendentes daqueles, miscigenados a netos de portugueses
marginais e de ex-escravos negros.
OUTRORA
Ao longo do século 20 essa realidade
transmudou-se. A cidade cresceu, passou a imperar a ordem pública, definiram-se
as castas sociais do meio urbano. Então, quem tinha casa na rua ou sítio no
arrabalde podia viver tranquilamente em seus domínios sem precisar de garrucha
ou mosquetão, e sem ser essencial manter cães ferozes nos quintais.
O crime acontecia com freqüência no meio do
povinho, nos mocambos, nas macumbas, nos cabarés, nos sambas periféricos, nas
areias, nas cachaçadas dos pescadores, mas isso não exsudava para a parte nobre
da cidade, e quase nunca alcançava a fidalguia das famílias de posse e de
renome. A polícia era temida e respeitada, as pessoas simples tinham reverência
aos homens cultos, ninguém atacava com violência o alheio patrimônio.
Os guardas noturnos apitavam pelas esquinas da
cidade, para repelir ladrões pé-de-chinelo que viessem de um subúrbio qualquer
subtrair alguma coisa, praticar um furto, forçar alguma porta, pular algum muro
para assaltar um galinheiro. Meu velho pai precisou sair a pé na madrugada
pelas ruas da cidade, no início dos 60, e levou na cinta o seu revólver.
Havia
cães vadios pelas ruas, e ele temia o eventual ataque de um hidrófobo raivoso
que encontrasse – só por isso justificou o porte da arma. À luz do dia aparecia
um descuidista, um romântico batedor de carteiras, um vigarista famélico, um
bêbado chato, um maconheiro manso, nunca um bandido perigoso.
Mesmo assim, quando a polícia pegava um
meliante qualquer, metia a peia, raspava-lhe a cabeça, mandava capinar por
muitos meses na colônia penal do Amanari. Sei que era cruel, mas “o historiador
não tem entranhas”. A violência contra a marginália protegia o cidadão, essa é
a conclusão fática. Fatídica, se preferirem, mas necessária, porque os bens
jurídicos se protegem de conformidade com a sua hierarquia, e a paz dos homens
de bem tem muito maior valor moral e importância social que a integridade dos
cretinos.
AGORA
Hoje vivemos neste século 21 em Fortaleza
cheios de apreensão e cercados de filas brasileiros. Lá fora o mundo é
novamente tão perigoso e violento quanto a selva que havia nos idos da
colonização, no tempo do Império. As onças e os índios sucumbiram à evolução da
sociedade, os cangaceiros foram decapitados, mas o efeito “Mad Max” se insinua, a improbidade se
agiganta, o poder público se apequena, o grito da anarquia ecoa nas esquinas e
a cidadania põe-se a agitar bandeiras brancas na direção dos energúmenos, como
se aproveitasse alguma coisa ao passarinho pedir paz aos gaviões.
O bandido é o inimigo sanguinário que não
entende a linguagem humanitária, mas os ativistas beneméritos clamam que se lhe
trate com doçura e se lhe concedam os mesmos direitos do homem bom. A
sociedade, exultante pela paz, insiste em praticar a justiça dos puros com os
injustos, em tolerar os intolerantes, em tratar com igualdade humana os
moralmente desiguais. Faz passeatas, oferece a outra face à bofetada, mas o
cutelo da contumácia é a resposta.
As verbas para as polícias são minguadas,
reduzem-se os homens em armas, a truculência chapa-branca é denunciada e
reprimida. Os políticos, que fazem as leis, vivem de votos, parte deles cortejando
o grande capital, que financia as campanhas, outra parte afagando as massas
torpes, que atropelam a ordem. Ficamos nós da classe média espremidos nas
engrenagens do moinho.
Claro que existem os dramas sociais, mas esses
sempre existiram e existirão. Tanto o homem quanto a fera indígenas tinham
sobradas razões éticas para atacar o invasor do seu habitat natural; contudo,
nem por isso prevaleceu a sua ação jus-naturalista contra a cidadania
florescente, até porque, não fosse assim, não teriam prosperado a humanidade e
seu engenho.
Já faz tempo, o belo sonho da igualdade plena
se acabou. Foi honesta a tentativa de torná-lo real, mas fracassou
inteiramente. Não existe a Canaã de leite e mel algures prometida, e a Utopia
de Morus, por definição, é inexistente, está patente. O comunismo e a
liberdade, como água e óleo, não se podem unir – hoje sabemos.
Enfim, já não há esperança de que a espécie
humana inteira se humanize, mas, ao contrário, há a certeza de que a luta dos
bons contra os maus seja perpétua, justificando as religiões e os tribunais.
Urge, sim, que os apelos dos mais pobres sejam ouvidos, que se lhes deem
moradia, saúde, educação, emprego, renda, oportunidades de progresso...
Mas,
enquanto isso, que os insubmissos sejam eficientemente contidos e os
sociopatas, segregados. Que os que já moramos, trabalhamos duro e pagamos
impostos tenhamos direito a segurança. Eis o que é mais urgente ainda, porque a
dignidade legitimamente conquistada não macula, enquanto a pobreza não
recomenda virtude, nem autoriza a delinquência.
Hoje estou na minha casa entre muralhas, e até
recentemente nem mesmo uma frágil cerca de bambus a guarnecia. Ouço o rugido
dos três cães que cismam no jardim, prontos para estraçalhar qualquer intruso,
quando até bem pouco tempo atrás um somente pequinês dentro de casa velava o
nosso sono. Se antes tinha um canivete na gaveta, agora é preciso manter ao alcance da
mão o revólver, municiado, hábil e certeiro.
Entretanto, que a
qualquer momento a lei lhe bate à porta e o requisite, que arma de fogo é instrumento
marginal que não serve ao cidadão, segundo se apregoa. E quem sabe também se confisquem os cães, ante a possibilidade de que os bichos possam eventualmente
malferir algum menor infrator protegido pelo ECA, que decida invadir a minha
casa para roubar o que tenho e seviciar minha família.
Sei não... Na verdade nem precisava da lei.
Gostaria eu mesmo de amansar os meus cachorros, demolir os muros e transformar
a arma moderna em enfeite de parede, como fizemos com as antigas, no século
passado. Mas não posso. Tenho que resistir. Vou esperar; quem sabe a barbárie
seja cíclica. Se for assim, tomara que este século passe logo!
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