O PALÁCIO DE INVERNO
E A CULTURA
Rui Martinho Rodrigues*
Antonio Gramsci (1891 – 1937), teórico do Partido Comunista
Italiano, expressou o objetivo político do partido e seus congêneres do ocidente,
dizendo que tomar o Palácio de Inverno (alusão a tomada do palácio do Czar, na
Revolução Russa) pouco adiantaria, porque as sociedades ocidentais não são “gelatinosas”,
como era a sociedade civil russa da época da revolução. Era preciso conquistar
a hegemonia ideológica, entendida como uma lógica destinada a legitimar a
conquista ou manutenção do poder. Gyorgy Luckás (1885 – 1971), teórico húngaro
do comunismo, disse que o alvo não deveria ser a conquista do governo, mas o
domínio da cultura.
Temos uma luta pelo governo e pelo domínio da cultura. Havia um
domínio absoluto na indústria cultural e nos meios formadores de opinião, da
tendência que amalgamava o relativismo cognitivo e axiológico da
pós-modernidade (ou modernidade líquida, conforme preferia Zygmunt Bauman, 1925
– 2017), com algumas convicções utópicas, formando uma sopa que inclui a
veneração de valores como igualdade e emancipação, ao lado da crítica acerba ao
sagrado, misturando ainda o coletivismo com o individualismo de certas formas
de emancipação. Diferentes tendências estavam unificadas sob o manto de rótulos
vagos, mal definidos ou tendo os mais variados sentidos.
Eis que de repente, não mais que de repente (Marcus Vinícius e
Mello Moraes, 1913 – 1980), foi questionado o inquestionável, a hegemonia do
discurso que pensa em renda sem produtividade e sem investimento, qualifica a
restrição ao consumo como exclusão, mas não se constrange em profligar a
aquisição de bens como “consumismo”. Bens só são desejáveis quando os
“esclarecidos” aprovam ou quando as massas não podem comprá-los. Defendem a
emancipação, mas não deixam de agir como diretores de consciência, demarcando
limites entre necessidades falsas e verdadeiras. O relativismo cognitivo e o igualitarismo
não afastam a hierarquia que separa os “esclarecidos” dos “alienados”.
As redes sociais quebraram o controle dos aparelhos ideológicos
(Louis Pierre Althusser, 1918 – 1990). A internet não foi aparelhada. Mas as
vozes dissonantes não seriam ouvidas sem a perda da imagem de pureza dos que
encarnavam o papel de vestais da República. A Lava Jato e a Operação Mãos
Limpas, desmascararam a “vanguarda da história”. Somos muito atentos ao que acontece
nos “países civilizados”. Lá fora o domínio dos “novos gestores da moral e dos
costumes” foi abalado.
Tudo deixou de ser sagrado? Não existe verdade nem valores, mas
pontos de vista circunstanciados? Então a cartilha dos “esclarecidos” também se
tornou relativa, encorajando o exercício da crítica pelos simples. Tudo é
banal? Vestais caem do pedestal. Sentindo-se forte, quem agia discretamente
passou a explicitar ideias e exibir condutas que macularam a imagem de superioridade
dos ídolos.
O debate econômico se mistura ao conflito ligado aos costumes. Criticamos
o clientelismo, mas reprovamos a recusa em praticá-lo em nome da
governabilidade. Defendemos a exibição de cenas em outros tempos havidas como
chocantes, mas nos sentimos chocados se elas são exibidas por quem as critica. É
a salgadalhada.
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