UM MUNDO APOLÍNIO
E DIONISÍACO
Rui Martinho Rodrigues*
Matanças e suicídios fúteis se repetem com frequência crescente.
Surgem as mais variadas explicações. Uns falam em bullying, como se matanças
indiscriminadas fossem decorrência do que outrora chamávamos “arenga” ou
“implicância”.
Outros culpam jogos eletrônicos, como se em tempos recentes todo
menino não brincasse “matando” dezenas de bandidos e índios com arma de
brinquedo, ou até com dois dedos apontados como arma, sem degenerarem em
matadores suicidas.
Outros, ainda, culpam as armas, como se o sujeito da ação
fosse o meio, não a pessoa que dele faz uso, ou como se estivéssemos falando de
crime ocasional, improvisado e viabilizado pela presença de um meio num momento
de descontrole. Obviamente não se trata disso. Tais crimes são longamente premeditados.
Mas nem tudo se explica logicamente. Talvez devêssemos recuperar a distinção
entre a lucidez e a loucura, desmoralizada desde que Georges Canguilhem (1904 –
1995), no seu opus magnum "O normal e
o Patológico", argumentou com razoabilidade, relativizando a fronteira entre
estes conceitos.
A demarcação perfeita de conceitos é impossível. Mas o total
desprezo pela capacidade de discernir entre realidades distintas não é
aceitável. Normal e patológico são realidades e nem sempre se confundem. A
loucura existe, embora o seu significado possa variar. Temos niilismo,
hedonismo, banalização dos mores, repúdio a todas as formas de controle social,
como todas fossem ilegítimas e desnecessárias, nos termos dos sonhos
emancipatórios.
Tais coisas sempre foram posicionamentos políticos e
filosóficos do campo da normalidade. Mas talvez estejam, em alguns casos,
assumindo outro sentido. Homicídios disparam em alguns países, suicídios em
outros, dependência química e depressão tornaram-se pandemias. Algo deve está
errado. Hedonismo, niilismo e solipsismo criam seres autotélicos. A
dessacralização dos mores tudo banaliza. É trágico.
A tragédia grega, na visão de Aristóteles (384aC. – 322aC.), tinha
o final triste de personagens que ousavam resistir ao destino. Nas Bacantes, de
Eurípedes (484aC. – 406aC.), Dionísio, deus Grego, pratica vingança contra os
seus parentes que não haviam acreditado na sua divindade, recusando-se a
prestar-lhe culto. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), em O nascimento da
tragédia, assinala neste drama grego um conjunto antitético de duas tendências,
uma apolínea e outra dionisíaca. A primeira na forma. A segunda na essência do
deus grego, anunciando a quebra de barreiras. A natureza, na representação
dionisíaca, é feroz.
Fingimos acreditar num mundo apolíneo, no qual não se pode sequer
fazer referência a baixa estatura de alguém como baixinho. O mundo
politicamente correto, formalmente apolíneo, tem como complemento a
intolerância e a fragilidade tragicamente melindrosa. Amalgamada ao niilismo,
ao hedonismo, ao solipsismo autotélico. A quebra de barreiras é o próprio
complemento dionisíaco, antitético da tendência apolínea.
Quem não transcende a própria finitude e não reconhece as barreiras
dos limites da convivência civilizada, mata e vai ao suicídio. Sem
transcendência a vida não tem sentido. A morte pode então preencher o vazio do
niilismo. A celebridade triste, a busca da “adrenalina” é uma forma de
hedonismo. A futilidade extrema no assassinato e suicídio não está separada da
busca de evidência, ainda que efêmera, póstuma e com o sentido de repúdio ou
revolta.
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