MANIQUEÍSMO
Humberto Ellery*
Nos primórdios do Século III (d.C.), quando o gnosticismo primitivo
começou a perder influência no mundo greco-romano, na Pérsia, um filósofo
cristão chamado Maniqueu, elaborou uma filosofia religiosa e sincrética pela
qual o mundo era dividido em apenas duas vertentes, a Luz, o Bem, o próprio
Deus; ou as Trevas, o Mal, o Diabo em pessoa.
A leitura estúpida de Mateus 6: 24 – “ninguém pode servir a dois
senhores, pois amará a um e odiará o outro...” – não deixava alternativas: ou
bem o cristão estava com Deus ou era condenado a servir ao Diabo.
Tal doutrina filosófica foi tão influente que Agostinho de Hipona
(ele mesmo, o Santo Agostinho) se deixou enredar por essa maluquice, até o dia
em que, com sua prodigiosa inteligência, desvendou a mensagem amorosa do
Cristo, muito mais ampla, generosa, acolhedora, e não comportava esse dualismo
rudimentar. Sua conversão ao catolicismo pleno, seus estudos, sua santidade,
fizeram de Agostinho um dos maiores Teólogos do Cristianismo, e por sua ação
catequética restabeleceu a antiga Fé, e aquele maniqueísmo religioso se
esvaneceu na poeira do tempo.
Mas o termo “maniqueísta” sobreviveu e se tornou um adjetivo que
até hoje designa as pessoas que reduzem todo posicionamento filosófico,
político ou doutrinário em Nós X Eles, Esquerda ou Direita, Lula ou Bolsonaro,
numa estreiteza de visão política que mata no nascedouro qualquer diálogo
minimamente sensato.
Este último par de antolhos, embora recente, tem feito um estrago “dos
diabos” em nossa sociedade, inclusive tem sua matriz original na dicotomia “esquerda-direita”.
Membros fanatizados das duas seitas, a Lulista e a Bolsonariana, se enfrentaram
na última eleição presidencial com uma fúria sectária tão cheia de ódios e
acusações, que atingiu níveis inesperados de desagregação e desavença,
inclusive nas famílias.
Irmãos antes unidos e amoráveis chegaram a se estapear, casamentos
com muitas bodas comemoradas azedaram, amizades antigas e fraternas
transformaram-se em inimizades irreconciliáveis.
Ambas as seitas reivindicam para si a primazia do Bem, “o inferno
são os outros” (Sartre explica), e na tentativa de destruição dos adversários,
ou melhor, inimigos, ficam nas redes (anti)sociais se agredindo, desferindo
impropérios, ofensas, acusações e fake news carregados de ódio, sem
perceberem que estão na verdade se auto-alimentando pois ambas as seitas se
nutrem justamente de ódio.
Eu, particularmente, não me ajoelho perante nenhum dos dois
altares, nem do Lula nem do Bolsonaro. No segundo turno das últimas eleições
não votei no Haddad por não querer a volta do PT e do Lula ao poder, pois,
segundo o meu entendimento, o Lula é o mais pernicioso personagem da História
do Brasil. Mas ao digitar na urna o 17 do Bolsonaro, e apertar o botão verde
CONFIRMA, o fiz com o mesmo sentimento de quem aperta o botão do vaso
sanitário, e pensei: “vai dar ruim!”
Continuo achando que o “Mito” é honesto e bem-intencionado, mas é
obtuso, inculto, ignorante, populista, histriônico, sem o mínimo cacoete de um
líder, em suma é constrangedoramente despreparado para exercer, com um mínimo
de competência, as complexas e difíceis funções de um Presidente da República.
Um alienado sem a menor compreensão da realidade.
Por tudo isso, ultimamente me afastei das discussões políticas,
pulei fora desse campo conflagrado, não por medo, mas por tristeza. Como não
estou de um lado nem do outro, estou no meio do fogo cruzado, tenho levado
porrada dos dois lados. Já fui chamado de fascista, esquerdista, idiota, imbecil,
já fui ofendido até de “petista”. Já tive artigo meu censurado em um blog que
assumiu abertamente a proposta de evolução política presente no discurso “mítico”.
É mole?
Da tal equipe ministerial brilhante só escapam os generais,
realmente brilhantes, porque o próprio Posto Ypiranga, mesmo tendo um invulgar
brilho como economista liberal, como político (e seu cargo é político) tem dito
bobagens aos montes.
Mas vamos pedir ao nosso Deus do Amor Infinito que vele por nosso
Brasil.
Oremos.
COMENTÁRIO
Esse artigo do impagável Humberto Ellery é um verdadeiro achado, na
seleta de toda a produção de jornalistas políticos vertida atualmente sobre o
momento nacional. Dificilmente, talvez nem nas célebres cartas de Cícero, se
encontre uma tese tão bem elaborada, vazada com tamanha erudição, para ao fim e
ao cabo desaguar um Amazonas de lógica em uma conclusão pelagicamente equivocada.
Enfim, uma valiosa pérola do paralogismo sofismático.
A política brasileira, depois de devolvido o seu timão ao mundo
civil, era um Titanic desvairado, navegando de deu em deu, tripulado por gente
como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, José Sarney, Jáder Barbalho, Fernando
Collor, Renan Calheiros, Antônio Carlos Magalhães, Fernando Henrique Cardoso, além de outros quejandos, todos muito probos cidadãos, defensores de seus feudos
regionais, fazendo a política de favores dos coronéis, com o espírito público
circunscrito à família, à cupinchada, restrito ao seu obtuso e passional eleitorado.
Insatisfeito com isso, o povo guinda ao poder a esquerda
brasileira, a mesma que perdera a batalha ideológica contra o regime militar,
tendo um operário sindicalista como ponta de lança, na esperança de que aquela
política velha fosse enfim proscrita, e que a visão socialista pudesse promover
a redenção moral, a justiça social e a salvação econômica da Nação.
Malgrado, década e meia depois, um carnavalesco e edênico Titanic, que
se convertera numa Arca de Noé, levando no bojo representantes de toda a fauna
politiqueira nacional, as tais “criaturas do pântano”, faz água e vai a pique –
e Jair Bolsonaro, até então um histriônico Deputado Federal cariosa, não teve
nada a ver com isso.
Pronto. Vamos ao epílogo. O único mito – que se construiu em quinze
anos – é o ex-presidente e atual presidiário Lula da Silva, cultuado pela
caterva que ele cevou nos cochos gordos da Nação, e pelo exército de zumbis que
o seu discurso produziu, como aquele flautista mágico da fábula, que encantava
e se fazia seguir pelos ledos camundongos.
Jair Bolsonaro recebeu esse epíteto de “Mito” apenas para que fosse
adequadamente contraposto ao antagonista, verdadeiramente mitológico, pois um
ídolo de fato não se produz em uma campanha. Jair Bolsonaro, para todos os
bolsonaristas, ainda não é uma grande devoção, pois não passa de uma esperança,
de uma aposta arriscada, a única presuntiva bala de prata contra o mal de
Maniqueu.
Voltando à analogia náutica, já que comento o artigo brilhante de
um Oficial de Marinha, Jair Bolsonaro, para os bolsonaristas, tem as
mesmas virtudes de uma tosca tábua de salvação desprendida do soçobro.
Feia, fria, desconfortável, instável, derivante, com todos os
defeitos que Ellery lhe atribui, porém sólida e franca, verdadeira e sincera, desejada,
festejada e beijada pelos que nela lograram embarcar procurando a salvação.
Nesse sentido, embora imperfeito, para os lúcidos navegantes, esse pobre destroço náutico é a configuração
simbólica do que Maniqueu chamava Deus.
Sim. Oremos!
Sim. Oremos!
Reginaldo Vasconcelos
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