A PARANOIA
DOS APARELHOS
Rui Martinho Rodrigues*
Durante a luta armada, os insurgentes desconfiavam de tudo e de
todos. Os próprios companheiros facilmente tornavam-se suspeitos, tendo havido
até justiçamentos em razão de suspeitas. Tratando-se de uma guerra, havia
necessidade de muita disciplina. Orientados por uma doutrina para a qual o
conflito é o motor da História, pensavam sempre em termos de guerra, e de fato
havia um conflito armado.


A menor divergência era vista como coisa de traidor ou de agente
inimigo infiltrado, sendo que infiltração de agentes inimigos era uma
realidade. A militarização dos grupos políticos em luta tinha ênfase na
disciplina, situação que agravava o clima de suspeita e de intolerância. A
divergência não podia ser tolerada. A hipersensibilidade, em face da
divergência ou do pensamento independe, recebeu o nome de “paranoia dos
aparelhos”. O termo aparelho, nesse sentido, designa o completo domínio de um
grupo ou instituição por uma – e somente uma – orientação doutrinária.
A exacerbação de ânimos, hoje, reintroduziu na política o clima de
guerra. Já não temos competição, mas conflito. Não temos concorrentes na
política, mas inimigos. Militantes agem como soldados em guerra. A sensibilidade,
própria do combatente, agravada pelas limitações intelectuais de quem não
conhece outras referências além daquelas do seu “aparelho”, alimenta a paranoia,
em meio à mistura de paixões, limitações intelectuais e desinformação. O que não
esta nas referências do “combatente” é interpretado como sinal de traição, ou coisa
de “infiltrado”.

Isso foi feito com sucesso ao longo da segunda metade do Século XX,
para o estabelecimento da atual hegemonia, com os seus quadros de referência
teórica e metodológica de uma mesma vertente das tradições políticas. Assim,
foram formados professores, comunicadores e formadores de opinião em geral.
Isso não se faz denunciando “infiltrados” e “traíras”.
Temos aparelhamento das instituições ou temos hegemonia ideológica
na sociedade? As instituições foram tomadas por alguma minoria, valendo-se de
processos seletivos tendenciosos? Isso aconteceu durante o processo de
conquista da hegemonia. Hoje, todavia, as instituições culturais, a burocracia
estatal e os meios de comunicação estão homogeneamente filiados a uma mesma
vertente ideológica.
A pluralidade foi extinta. Isso se fez ao longo de décadas. Houve
caneladas, aparelhamento nos processos seletivos dos cursos de pós-graduação,
concursos para o magistério, concessão de bolsas de pesquisas, publicação de
trabalhos acadêmicos. Aliança com interesses corporativos e particularistas
esteve presente. O domínio de tradições de uma só vertente, hoje, se faz por
falta de quem apresente algo diferente. Toda uma geração não conhece outra
coisa. O mundo quase todo está mais ou menos assim, com exceção do Leste Europeu.
No Brasil, porém, a situação é mais grave.
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