REMODELAR ANTIGOS
CONCEITOS PARA O FUTURO
Edmar Santos*
Os humanos sempre
senguem ideias dominantes. Retóricas e ideologias convencem e são colocadas
como diretrizes gerais que conduzem o pensamento coletivo e propiciam o
controle das massas. Ao se falar da necessidade
de reavaliar o sistema punitivo com viso a rever a criminalização dos
despossuídos e, principalmente, o sistema prisional, certamente se incorre em
um iminente risco de ser incompreendido e logo constrangido ao pensamento
dominante – neste momento, o pensamento conservador de que “bandido bom é
bandido morto” – que segue uma generalização de igualar na punição os que
sempre foram desiguais em sociedade. Qualquer um com discurso que vá de
encontro ao pensamento hegemônico geralmente empregado pelos detentores do
poder para manipulação da massa geral, se vê certamente (des)qualificado como
um doce sonhador ou um ideólogo culpavelmente ignorante quanto às rudes
realidades da vida urbana contemporânea (Waquant 2010). Não obstante, é sempre
preferível sonhar com dias melhores!
A História mostra
que na Idade Média, na Renascença, no Mercantilismo, no Capitalismo e Iluminismo,
cada um ao seu tempo e por seu modelo de (Re)produção, estabeleceu seu modo de
prática de justiça e punição, como se apresenta respectivamente: multas e penitências,
mutilações e exílios, exploração marítima, pena de prisão. Pelo que se
depreende um claro e permanente conflito de classes como chamaria Karl Max
(1818 – 1883), em um histórico processo exploratório entre os que possuem e os
despossuídos. E essa mesma história ainda mostra hodiernamente, como vem
apontando em suas obras o sociólogo Loïc Waquant, que o Estado penal substituiu
o Estado do bem estar social, e tal fato vem mantendo em jaulas um número cada
vez mais crescente de pessoas em um ambiente de despersonalização. Um sapiens
na jaula, um inimigo furioso.
A despersonalização
que atinge o apenado no momento que adentra ao cárcere, parece ser um ente
oxidante que age também e de maneira tão insidiosa sobre a própria prisão, que
a tornou, como torna o preso, um outro ser. Até mesmo um ser de
dupla identidade pelas quais se apresenta de uma forma para a sociedade que de
fora lhe observa e, uma outra na sua existência consigo mesma e com seu
espaço. Se sua máscara formal é de uma instituição constituinte do Sistema de Justiça e por ela cumpre seu mister de isolar quem está dentro e não merece
estar fora, de quem está fora e ainda não perdeu o direito de permanecer; sua
outra máscara é a de um inferno que se alimenta e se auto sustenta pelo ódio
que emana de dentro para fora e vice-versa.
É nessa relação
entre espaço interno e externo que se faz dessa instituição um todo impactante
sobre as vidas que travam batalhas contra um sofrimento permanente como
destacou Erving Goffman (1922 – 1982) que as denominou, dentre outras, como
instituições totais; cujas desigualdades reproduzidas veem causando o seu
descrédito tornando-a líquida em sua representação social, usando aqui as
palavras o sociólogo Zygmunt Baumam (1925 – 2017). A prisão é tão escola do
crime como o espaço social ao qual reproduz.
O fato é que em
relação ao sistema prisional muitas teorias foram produzidas e muitas práticas
carcerárias foram efetivadas: o isolamento, a disciplina rígida, o cumprimento
de horários pré-estabelecidos, o trabalho, a instrução religiosa. A arquitetura
predial também passou a ser incorporada a essa tecnologia de domínio e
adestramento como o exemplo do modelo panóptico de vigilância total e
ininterrupta criado por Jeremy Bentham. Mas apesar de todos esses
esforços o tempo e as retóricas de domínio social levaram o sistema punitivo e
a prisão a cometerem mais injustiças em nome da lei do que a vingarem e
prevenirem a sociedade de ataques do crime. O abarrotamento das celas nas
prisões ocasionado pelas políticas de aprisionamento massivo, minaram a
arquitetura e estrangularam as rotinas de tratamento prisional. Os discursos da
“tolerância zero” no meio social e o de “contato zero” nas prisões ocasionam, respectivamente, o aumento geométrico da população carcerária e o
recrudescimento e violencialização (Ezeokeke 2011) do ambiente carcerário.
Apesar de suas
ineficácias no sentido mais amplo, julgar que todas as reformas e medidas implementadas
durante a história da prisão foram infrutíferas por si mesmas é um ato
imprudente. O empenho em tornar o espaço carcerário equilibrado com a medida da
pena e com o propósito implícito de regresso do apenado ao meio social,
encontrou em vários juristas, sociólogos, cientistas, teólogo e outros, um
debruçar de preocupação que mais foi obstaculizado pelo discurso político de
cada época, do que propriamente em sua aplicação e efeito. Toma-se como exemplo
o pensamento de Cesare Beccaria (1738 – 1794), o qual pregava que se a punição
for muito severa em relação a qualquer tipo de delito, mais crimes o indivíduo
cometeria para se livrar do crime prescrito; indicando à sua época a existência
de uma desproporção entre o que diz a reprimenda legal e a prática punitiva no
encarceramento. Apesar do líquido tempo transcorrido desde essa observação,
ainda agora no século XXI se presencia o fato tão cientificamente constatado no
século XVIII. A mensagem que não foi ouvida ainda ecoa pelo espaço-tempo
séculos após, comprovando sua veracidade nos índices estatísticos sobre crime e
violência em todo o mundo. A conveniência da prisão superou sua necessidade de
ser eficiente.
Uma sociedade que
avança pelos séculos deve refletir sobre a questão de manter um mesmo quadro de
degeneração de suas prisões como masmorras da idade medieval, quando as
tecnologias disruptivas, nos alerta o atualíssimo historiador e escritor Yuval
Arari (2018), batem à porta para apresentar-lhe uma nova revolução com a
iminência de gerar ainda mais desigualdades sociais, excluindo milhões do
mercado de trabalho. O exemplo claro do impacto das tecnologias disruptivas
está em como a tecnologia da telefonia celular feriu de morte a segurança de
isolamento do criminoso por traz das muralhas, fazendo com que este, apesar de
trancado, ainda acesse seus contatos para continuar a praticar crimes, alentar a
saudade de familiares e manter-se nas relações sociais do seu meio comunitário
de onde fora extraído. As muralhas foram rompidas pela tecnologia.
Esse modelo deve ser
repensado e isso é inquestionável, em face de sua própria ineficiência como
alhures apontava o escritor russo Fiódor Dostoievsky (1821 – 1881) que é
perfeita e atual, como se fora dita em nossos dias: “(...) estou convencido de
que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador,
aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o,
assusta-o, e depois nos apresenta como modelo de regeneração, de arrependimento, o
que é apenas uma múmia ressequida e meio louca”. Uma fábrica de loucos
degenerados é o que se caracteriza a prisão.
Justamente pela
constatação de que não se pode abrir mão da prisão como modelo de punir por não
haver o que lhe substitua de pronto, é que urge, há muito, que se remodele esse
conceito de prisão masmorra moderna, principalmente para adequá-lo aos novos
modelos de tecnologias, resgatando teorias e práticas pensadas e implementadas
no passado e que ainda se mostram coerentes com a perspectiva de transformação
e recuperação do homem capaz do convívio social e detentor de direitos, além de
se criar outras com base, principalmente, nos avanços científicos sobre o
estudo da personalidade e do comportamento,
conceitos de nossa era com foco na pessoa humana que se busca recuperar e não na pessoa
criminosa que se quer extinguir. Criar
alternativas ao sistema convencional de prisão pode representar um primeiro
passo para renovação, como afirma OTTOBONI (1931-2019) criador do modelo APAC que aduz: recuperando
o infrator protegida está a sociedade e prevenida está a vitimização. Esse é o possível caminho para uma paz
social mais perene. O sonho de todos.
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