sábado, 19 de janeiro de 2019

ARTIGO - Remodelar Antigos Conceitos Para o Futuro (ES)


REMODELAR ANTIGOS
CONCEITOS PARA O FUTURO
Edmar Santos*


Os humanos sempre senguem ideias dominantes. Retóricas e ideologias convencem e são colocadas como diretrizes gerais que conduzem o pensamento coletivo e propiciam o controle das massas.  Ao se falar da necessidade de reavaliar o sistema punitivo com viso a rever a criminalização dos despossuídos e, principalmente, o sistema prisional, certamente se incorre em um iminente risco de ser incompreendido e logo constrangido ao pensamento dominante – neste momento, o pensamento conservador de que “bandido bom é bandido morto” – que segue uma generalização de igualar na punição os que sempre foram desiguais em sociedade. Qualquer um com discurso que vá de encontro ao pensamento hegemônico geralmente empregado pelos detentores do poder para manipulação da massa geral, se vê certamente (des)qualificado como um doce sonhador ou um ideólogo culpavelmente ignorante quanto às rudes realidades da vida urbana contemporânea (Waquant 2010). Não obstante, é sempre preferível sonhar com dias melhores!

A História mostra que na Idade Média, na Renascença, no Mercantilismo, no Capitalismo e Iluminismo, cada um ao seu tempo e por seu modelo de (Re)produção, estabeleceu seu modo de prática de justiça e punição, como se apresenta respectivamente: multas e penitências, mutilações e exílios, exploração marítima, pena de prisão. Pelo que se depreende um claro e permanente conflito de classes como chamaria Karl Max (1818 – 1883), em um histórico processo exploratório entre os que possuem e os despossuídos. E essa mesma história ainda mostra hodiernamente, como vem apontando em suas obras o sociólogo Loïc Waquant, que o Estado penal substituiu o Estado do bem estar social, e tal fato vem mantendo em jaulas um número cada vez mais crescente de pessoas em um ambiente de despersonalização. Um sapiens na jaula, um inimigo furioso.

A despersonalização que atinge o apenado no momento que adentra ao cárcere, parece ser um ente oxidante que age também e de maneira tão insidiosa sobre a própria prisão, que a tornou, como torna o preso, um outro ser. Até mesmo um ser de dupla identidade pelas quais se apresenta de uma forma para a sociedade que de fora lhe observa e, uma outra na sua existência consigo mesma e com seu espaço. Se sua máscara formal é de uma instituição constituinte do Sistema de Justiça e por ela cumpre seu mister de isolar quem está dentro e não merece estar fora, de quem está fora e ainda não perdeu o direito de permanecer; sua outra máscara é a de um inferno que se alimenta e se auto sustenta pelo ódio que emana de dentro para fora e vice-versa.

É nessa relação entre espaço interno e externo que se faz dessa instituição um todo impactante sobre as vidas que travam batalhas contra um sofrimento permanente como destacou Erving Goffman (1922 – 1982) que as denominou, dentre outras, como instituições totais; cujas desigualdades reproduzidas veem causando o seu descrédito tornando-a líquida em sua representação social, usando aqui as palavras o sociólogo Zygmunt Baumam (1925 – 2017). A prisão é tão escola do crime como o espaço social ao qual reproduz.

O fato é que em relação ao sistema prisional muitas teorias foram produzidas e muitas práticas carcerárias foram efetivadas: o isolamento, a disciplina rígida, o cumprimento de horários pré-estabelecidos, o trabalho, a instrução religiosa. A arquitetura predial também passou a ser incorporada a essa tecnologia de domínio e adestramento como o exemplo do modelo panóptico de vigilância total e ininterrupta criado por Jeremy Bentham. Mas apesar de todos esses esforços o tempo e as retóricas de domínio social levaram o sistema punitivo e a prisão a cometerem mais injustiças em nome da lei do que a vingarem e prevenirem a sociedade de ataques do crime. O abarrotamento das celas nas prisões ocasionado pelas políticas de aprisionamento massivo, minaram a arquitetura e estrangularam as rotinas de tratamento prisional. Os discursos da “tolerância zero” no meio social e o de “contato zero” nas prisões ocasionam, respectivamente, o aumento geométrico da população carcerária e o recrudescimento e violencialização (Ezeokeke 2011) do ambiente carcerário.

Apesar de suas ineficácias no sentido mais amplo, julgar que todas as reformas e medidas implementadas durante a história da prisão foram infrutíferas por si mesmas é um ato imprudente. O empenho em tornar o espaço carcerário equilibrado com a medida da pena e com o propósito implícito de regresso do apenado ao meio social, encontrou em vários juristas, sociólogos, cientistas, teólogo e outros, um debruçar de preocupação que mais foi obstaculizado pelo discurso político de cada época, do que propriamente em sua aplicação e efeito. Toma-se como exemplo o pensamento de Cesare Beccaria (1738 – 1794), o qual pregava que se a punição for muito severa em relação a qualquer tipo de delito, mais crimes o indivíduo cometeria para se livrar do crime prescrito; indicando à sua época a existência de uma desproporção entre o que diz a reprimenda legal e a prática punitiva no encarceramento. Apesar do líquido tempo transcorrido desde essa observação, ainda agora no século XXI se presencia o fato tão cientificamente constatado no século XVIII. A mensagem que não foi ouvida ainda ecoa pelo espaço-tempo séculos após, comprovando sua veracidade nos índices estatísticos sobre crime e violência em todo o mundo. A conveniência da prisão superou sua necessidade de ser eficiente.

Uma sociedade que avança pelos séculos deve refletir sobre a questão de manter um mesmo quadro de degeneração de suas prisões como masmorras da idade medieval, quando as tecnologias disruptivas, nos alerta o atualíssimo historiador e escritor Yuval Arari (2018), batem à porta para apresentar-lhe uma nova revolução com a iminência de gerar ainda mais desigualdades sociais, excluindo milhões do mercado de trabalho. O exemplo claro do impacto das tecnologias disruptivas está em como a tecnologia da telefonia celular feriu de morte a segurança de isolamento do criminoso por traz das muralhas, fazendo com que este, apesar de trancado, ainda acesse seus contatos para continuar a praticar crimes, alentar a saudade de familiares e manter-se nas relações sociais do seu meio comunitário de onde fora extraído. As muralhas foram rompidas pela tecnologia.

Esse modelo deve ser repensado e isso é inquestionável, em face de sua própria ineficiência como alhures apontava o escritor russo Fiódor Dostoievsky (1821 – 1881) que é perfeita e atual, como se fora dita em nossos dias: “(...) estou convencido de que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador, aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o, e depois nos apresenta como modelo de regeneração, de arrependimento, o que é apenas uma múmia ressequida e meio louca”. Uma fábrica de loucos degenerados é o que se caracteriza a prisão.

Justamente pela constatação de que não se pode abrir mão da prisão como modelo de punir por não haver o que lhe substitua de pronto, é que urge, há muito, que se remodele esse conceito de prisão masmorra moderna, principalmente para adequá-lo aos novos modelos de tecnologias, resgatando teorias e práticas pensadas e implementadas no passado e que ainda se mostram coerentes com a perspectiva de transformação e recuperação do homem capaz do convívio social e detentor de direitos, além de se criar outras com base, principalmente, nos avanços científicos sobre o estudo da personalidade e do comportamento,  conceitos de nossa era com foco na pessoa humana  que se busca recuperar e não na pessoa criminosa que se quer extinguir. Criar alternativas ao sistema convencional de prisão pode representar um primeiro passo para renovação, como afirma OTTOBONI (1931-2019)  criador do modelo APAC que aduz: recuperando o infrator protegida está a sociedade e prevenida está a vitimização. Esse é o possível caminho para uma paz social mais perene. O sonho de todos.


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