segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

ARTIGO - Crime e Política Criminal (RMR)


CRIME E POLÍTICA CRIMINAL
Rui Martinho Rodrigues*


Edmar Santos nos brindou com uma instigante reflexão sobre conceitos antigos e dominantes. O tema foi o crime e a política criminal. Analisou o maximalismo penal, abordando a “prisão em massa” em razão da “criminalização dos despossuídos” e o aumento da população carcerária; as condições da vida nos cárceres, realmente transformados em centros de recrutamento, aperfeiçoamento, comando, controle e coordenação do crime.

O Direito Penal máximo encontra receptividade junto a gente simples. Universidades, imprensa, juristas, judiciário não são tão propensos ao modo draconiano de tratar o crime. Somos um dos raros – senão o único país do mundo no qual uma condenação até quatro anos de prisão não leva à reclusão, ensejando formas mais brandas de punição. Temos quatro instâncias recursais ofertadas à defesa do réu e infinitos recursos. O Judiciário é tolerante com recursos procrastinatórios.

Temos prescrição da pretensão punitiva e da pretensão executória da pena, com prazos mais exíguos do que na maioria dos países. Temos visita íntima aos encarcerados (países mais desenvolvidos não permitem contato direto entre condenados e visitantes). A primariedade dos condenados é restabelecida cinco após o cumprimento da condenação. Não temos pena de morte, perpétua, mutiladora nem infamante. Só temos sanção restritiva de liberdade, pecuniária e restritiva de direitos. A execução da sanção não pode passar de trinta anos. Temos progressão do regime de execução submetida a critérios mais benevolentes do que no Direito britânico, japonês e de tantos outros países desenvolvidos. Nada disso é Direito Penal draconiano.

Leis incriminadoras, encarceradoras, majorando penas têm se multiplicado. A gravidade da sanção não é importante para a dissuasão do crime. A certeza da aplicação da pena é que tem esse efeito, bem o disse Edmar Santos. Temos, porém, uma parcela ínfima de crimes esclarecidos e punidos. Logo, temos impunidade, não temos “prisão em massa”. Não se prendem todos os suspeitos, acusados ou condenados, nem sequer a maioria deles. Há milhares de mandados de prisão em aberto. Inúmeros criminosos contumazes convivem livremente com a população.

Temos uma grande e crescente população carcerária e, por força de velhos conceitos hegemônicos que precisam ser repensados, como bem o disse Edmar Santos, não olhamos para a profunda e abrupta revolução dos costumes. A perda de referências partilhadas, a banalização dos mores, o desprestígio dos agentes tradicionais de controle social, como pais, professores, clérigos e os mais velhos em geral deixou o Estado como o único agente de controle das condutas antissociais. Logo, não é surpresa que haja aumento da população carcerária. Mais condutas antissociais levam ao crescimento do número de presos ou à impunidade. Temos as duas coisas. Uma parcela da opinião pública, dos policiais, do Ministério Público e da magistratura tende para o punitivismo em razão da elevada criminalidade.

As condições de vida nas penitenciárias são calamitosas. Melhorar a situação dos apenados é uma reivindicação justa, mas exige recursos. De onde tirá-los? Da educação, segurança pública, serviços de saúde ou infraestrutura logística? A boa gestão dos presídios poderá melhorar a situação. Aperfeiçoamentos na lei de execução penal poderiam contribuir para impedir que as penitenciárias sejam centros de administração do crime.

A condição social dos apenados é posta, no primoroso artigo de Edmar Santos, como própria dos excluídos, usando a categoria classe social e econômica como unidade de análise. Acertadamente, porém, propõe que remodelemos antigos conceitos. A categoria de análise “classe” é uma das antigas concepções hegemônicas que precisam ser repensadas, conforme sugere Edmar Santos.

A teoria de estratificação invocada por Edmar Santos, inspirada em Karl Heirinch Marx (1818 – 1883) é dicotômica, divide a sociedade, com toda a sua diversidade e complexidade, em apenas dois grupos: “despossuídos” e “possuidores”, ou “exploradores” e “explorados”, “oprimidos” e “opressores”. Cada um destes grupos seria internamente homogêneo. Despossuídos seriam um conjunto de pessoas semelhantes no essencial, por força de suas condições materiais. A inserção confessional, geracional, étnica, comportamental ou cultural é considerada epifenominal.

Os integrantes de classes distintas seriam diferentes no essencial. Não importa que o índice de suicídios, orientação sexual, filiação confessional, dissolução conjugal, uso de drogas lícitas e ilícitas seja comum a ambas as classes. As condições materiais determinam, sim, diferenças do que depende da capacidade aquisitiva. “Oprimidos” e “opressores” usam drogas lícitas e ilícitas.

Uns consomem drogas de menor preço, outros as mais caras. Ambos têm a mesma diversidade de orientação sexual, mas satisfazem-nas em lugares diferenciados pelo preço; praticam crimes, mas a espécie de delitos varia conforme a oportunidade oferecida pela posição social. Grandes empresários e políticos (opressores) fazem fraude em licitação. “Oprimidos” assaltam a mão armada, ops, nem todos, em ambos os grupos. Esta é uma teoria de estratificação social baseada na origem da renda (capital ou trabalho) e é reducionista, como demonstrado.

Outra teoria das classes, inspirada em Karl Emil Maximilian Weber (1856 – 1920), considera a quantidade de renda como critério de distinção das classes. Assim não teríamos apenas duas classes, mas uma segmentação do tipo A, B, C, D e E. Esta reconhece que as possibilidades financeiras determinam condições de vida material, sem atribuir a orientação sexual, a dissolução conjugal, o uso de drogas, as práticas delitivas, o índice de suicídio ou as ideias políticas às classes. Escapa do reducionismo e é a teoria usada nas pesquisas eleitorais, mercadológicas e etc. Afinal o dinheiro vindo do capital ou do trabalho, quando nas mesmas quantidades, compra as mesmas coisas. Um assalariado bem remunerado, como artistas, atletas e técnicos desfrutam das mesmas benesses de quem tem ganhos de capital. A estratificação pela origem da renda, dicotômica, separando “opressores” de “oprimidos” serve para discurso de protesto. Não é usada nas pesquisas. A maioria dos presos é pobre porque o tipo de crime que eles praticam é mais fácil de investigar e lhes faltam bons defensores.

Edmar Santos tem razão quando diz que precisamos repensar os velhos conceitos hegemônicos. Acrescentemos: a começar pela estratificação baseada na origem da renda, embora quem assim procede possa tornar-se estigmatizado, receba rótulos pejorativos, perca a condição de membro da inteligentsia e o status de superioridade moral de quem diz “espelho meu, espelho meu, quem é mais generoso do eu, que defendo os oprimidos?.

Não importa que o “sistema explorador”, desde que foi introduzido no mundo, seguindo a esteira da modernidade, tenha aumentado os anos de escolaridade, os anos de vida, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, criado sistemas de assistência social, expulsado o escravismo para o crime, dado proteção às minorias e melhorado todos os indicadores de qualidade de vida.


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