TODO MENINO É CHEIROSO
Reginaldo Vasconcelos*
Fábio Nogueira foi meu colega de trabalho. Pertencia à
casta dos funcionários fundadores do Banco do Estado, um dos cardeais da
empresa, especialmente nos meandros do crédito rural e industrial.
Não sorria jamais, e, assim mesmo, na juventude, fora do
corpo de redatores de humor dos programas cômicos da televisão no Ceará, autor
de blagues do Renato Aragão, de roteiros de "Praxedinho e Anicetinha", uma das
primeiras comédias de situação do teleteatro cearense.
Ele descendia da família que venceu os índios paiacus, de
Pacajus, e conquistou as suas terras, para si e para uma santa da Igreja. Era
valente e irritadiço, não obstante dono de tiradas havidas com um senso de
humor privilegiado.
Bebia bem, e um dia foi embriagado dar aula aos novos
gerentes do Banco, marcada para um sábado. Gostava de mim, fazíamos farras
juntos no meu Karmann Ghia, que ele gabava como “um carrinho diferente”. Tínhamos intimidade, ele tolerava o meu
conselho de mais jovem.
Nesse dia, ao chegarmos à calçada, eu lhe recomendei que
evitasse beber antes das aulas aos gerentes, que todos haviam notado que bebera,
que isso não ficava bem para o elevado conceito profissional que conquistara. Sério
ele ouviu, e discretamente agradeceu.
Nessa aula ele denunciou que os fiscais de crédito rural
das agências do sertão costumavam não realizar as vistorias que lhes eram
designadas. Que colocariam o automóvel sob um cepo e fariam o pneu girar no ar,
para cobrar a quilometragem nas diárias... mas, ficavam em casa e forjavam os relatórios.
Em sua análise, geralmente eram jovens funcionários que
exerciam essa função, certamente recém-casados, normalmente com um bebezinho em
casa – “e todo menino é cheiroso!” – de
modo que eles preferiam ficar cheirando os filhos a meterem-se nas fazendas –
assim ele advertia os futuros gerentes, no sentido de que marcassem colado os
que iriam comandar.
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O Ayrtão, meu pai, era um bom contador de histórias. Como
tal, um grande observar do mundo e dos homens. Os fatos mais comezinhos que presenciasse,
ou mesmo que ouvisse contar, nos seus detalhes mais facetos – e os tipos
burlescos que cruzassem o seu caminho – todos eles entravam para sempre no seu
particular anedotário.
Das muitas histórias que ele gostava de contar estava
aquela de um mecânico bêbado e imundo, trazendo pela mão um filho pequeno, tão
sujo quanto o pai, os quais entraram no bonde de que o narrador era passageiro,
ainda na sua juventude.
A dupla sentou-se, e o pai – talvez notando os olhares
críticos e os gestos de repulsa pelo pouco asseio que ostentavam (era um tempo
em que só se saía de casa muito limpo e alinhado) – a espaços de tempo o pai
cheirava o pescoço do menino e vociferava: “Ô menino cheirooooso!!!!”. Daí a
pouco, cheirava de novo e repetia: “Mas ô menino cheirooooso!!!”.
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Dois anos depois um inverno forte fez arrombar o açude do
Orós, e nós dois estávamos lá na fazenda, sem assistência feminina, envolvidos
naquelas urgências da ruptura da represa, a que fomos assistir por toda uma
noite e madrugada.
Na tarde do dia seguinte tomamos um avião DC-3 na direção
da Capital, entre políticos e engenheiros que haviam acompanhado aquele evento,
ambos cansados e famintos, sujos de barro até a alma, eu só de calção e
descalço, que em algum ponto da aventura perdera os chinelos.
Na chegada noturna na cidade meu jovem pai foi repreendido
pela minha mãe e pela mãe dele – “Olha o
menino, imundo no meio do povo, dentro daquele avião!” – e eu não sei se me
acharam cheiroso, mas, de que me cheiraram, eu me lembro.
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Dou toda razão ao Fábio Nogueira, ao mecânico bêbado, a
minha mãe e minha avó que, naquela noite, ainda sujo, me cheiraram. Sim, todo
menino é cheiroso, e eu que já cheirei duas filhas e dois netos que hoje já
recendem a gente grande, resta ainda a última neta, que ainda é um botão de
flor.
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