terça-feira, 25 de agosto de 2020

ARTIGO - Os Dois Brasis (RMR)


OS DOIS BRASIS
Rui Matinho Rodrigues*


Jacques Lambert (1901 – 1991), na obra “Os Dois Brasis”, escrita entre Vargas e Kubitschek, sob a égide do desenvolvimentismo, destacou a dualidade da nossa formação histórica e cultural como um desafio ao nosso desenvolvimento, pelos erros do desencontro dos brasis.

Roger Bastide (1898 – 1974), na obra “Brasil, Terra de Contrastes”, assinalou a diversidade do meio natural e dos aspectos sociais, econômicos e culturais. Registrou, na educação, as diferenças entre os diversos níveis e regiões; e a descontinuidade das ações do Estado. Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866 – 1909), na obra “Os Sertões”, fala do sertanejo como um tipo distinto do brasileiro do litoral.

O Brasil cosmopolita, dos bons colégios e Universidades, digitalizado, secularizado (exceto pelas religiões políticas), leitor da imprensa internacional ou indiretamente influenciado por estes fatores é o Brasil pós-moderno. Outro Brasil é meio tradicional, dado a um sincretismo confessional; permeável às religiões políticas; licencioso como Macunaíma, mas fatigado com a corrupção e a revolução dos costumes. Os sinais de incômodo do “herói sem caráter” com a “sociedade pós-moralista” (Gilles Lipovetsky, 1944 – vivo) resulta do impacto das novas referências culturais ou falta delas, criam a tendência ao retorno dos padrões contestados pelo pensamento libertário.

Há um certo flerte da revolução dos costumes com o niilismo e até com o solipsismo induzido pelo relativismo cognitivo e axiológico. A contradição entre o pensamento coletivista e a hipertrofia do individualismo é notória. A libertação dos liames sociais da organização familial se fez em nome do combate ao patriarcalismo. A crítica aos padrões sociais, havidos como opressivos, representados pela imposição de padrões culturais como os papéis sociais, inclusive nos aspectos identitários, animados pelo multiculturalismo diferencialista, exacerbou antagonismos, fragilizou solidariedades, levou ao eremitério, aos guetos, ao esgarçamento do tecido social e à anomia. As consequências desagradáveis e onerosas do hedonismo foi o que restou no deserto de valores imposto pela crítica radical dos costumes.

Os adeptos do progresso, entendido como uma ordem imaginada por intelectuais geniais, superior ao ordenamento espontâneo de uma experiência milenar, sentiram-se fortes por convencerem os letrados, cosmopolitas e “esclarecidos” da cientificidade de suas ideias. Uma estranha cientificidade. Pretende mais do que descrever a realidade. Quer prescrever o dever ser. Invoca valores tradicionais, como solidariedade e justiça, mas contesta a ética das tradições. Não abandona suas teorias quando elas fracassam, esquivando-se do compromisso com a falseabilidade do racionalismo crítico (Karl Raymond Popper, 1902 – 1994).

Há uma onda conservadora? O que é conservadorismo? A impaciência em face da impunidade do estamento burocrático patrimonial, descrito por Raymundo Faoro (1925 – 2003) em “Os donos do Poder”, será conservadorismo? O sucesso dos que se esforçam por chocar a sensibilidade dos simples, causando revolta, é uma resposta conservadora? Norberto Bobbio (1909 – 2004) defende o direito de não ser escandalizado. A revolta dos simples com a nova moralidade, o garantismo penal, a censura prévia aos meios de comunicação, tudo isso seletivamente praticado conforme conveniências e paixões não são revolta apenas do conservadorismo.

Um Brasil não conhece o outro. A divulgação de uma reunião do ministério, havida como capaz de implodir o Governo, recebeu expressiva aprovação do outro Brasil. Elites fazem leis que os estrangeiros aprovam e o outro Brasil padece. Os reis filósofos de Platão (428/427 – 348/347) ou os intelectuais ungidos de Thomas Sowell (1930 – vivo) não conhecem os governados de John Locke (1632 – 1704), que lhes outorgam o poder.


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