GUERRAS E PERDAS
Rui Martinho Rodrigues*
Soldados efetuaram oitenta disparos contra um carro. Nele havia uma
família. Não teria havido ordem de parar, nem tiros de advertência. A patrulha
era de dez soldados, que é um grupo de combate. Usava fuzis de guerra. Os
integrantes certamente eram jovens de 19 anos, prestando serviço militar.
Estamos em abril, seriam incorporados em janeiro? Talvez. Patrulha de
10 soldados não faz trabalho policial, mas operação de guerra. Policiais andam
em dupla, ou até sozinhos. O uso de fuzis não é típico de atividade policial.
Jovens de 19 anos, prestando serviço militar, recém-incorporados, com poucos
meses de treinamento básico, não estão preparados para o dificílimo trabalho de
guerra urbana.
A situação é de conflagração. Ao longo do ano de 2018, a cada dois
ou três dias, um policial foi assassinado no Rio. Bandidos estão equipados com
armas de guerra. As tropas do crime são numerosas, enfrentam batalhões inteiros.
O equipamento delas já abateu até helicópteros. Estatísticas indicam mais de 60
mil mortos no País em um ano. Pode ser muito mais. Não propriamente por sub-registro,
já que mortes geralmente são notificadas. Mas existem registros lançados
equivocadamente em categorias diferenciadas. Desaparecidos são centenas de
milhares. Dez por cento destes podem ter sido assassinados. O número de vidas
ceifadas deve ser muito maior.
Facções criminosas exercem domínio de território, impõem leis,
obrigando motoristas a baixar vidros, ligar lâmpadas internas, exigem cópia de
chave da residência de moradores de certas áreas e despejam famílias. Não é
exercício de fantasia dizer que os jovens soldados que patrulham as ruas do Rio
o fazem apavorados. Nem se pode esperar que combatentes tomados pelo medo, em
uma guerra, sacrifiquem a própria segurança para evitar erros potencialmente
trágicos. Em toda guerra ocorrem perdas colaterais.
Tragédias como esta, dos oitenta tiros contra um carro com
inocentes, trazem de volta o tema das políticas públicas, presença do Estado,
educação e outras medidas de maior alcance do que aquelas típicas de guerra. É
bom pensar em fazer a casa, mas quando ela está em chamas é preciso combater o
fogo. Não se fazem guerras sem leis excepcionais, cuja duração deve ser limitada
no tempo. Nem se exclui a possibilidade de perdas colaterais no transcurso de
uma conflagração. Tais medidas ensejam práticas abusivas indesejáveis.
A escolha de Sofia que se nos apresenta tem como primeira opção
aceitarmos um longo e tenebroso sofrimento na mão de bandidos que despejam
famílias de suas casas, exigem cópia de chaves das residência para ter acesso a
elas quando bem queiram e entendam, arvoram-se ao “direito” de requisitar uma
filha mocinha do pobre para a prestar serviços sexuais, usar a residência do
pobre como depósito de drogas, recrutar filho do pobre para as facções
criminosas etc., esperando pelo resultados de políticas públicas que não
diminuíram a criminalidade nos seis últimos governos dotados de “sensibilidade
social”. Houve o contrário: a delinquência cresceu.
A opção número dois consiste em buscar a implementação de políticas
públicas, analogamente ao esforço de construção da casa, mas combater o
incêndio, fazer guerra com instrumentos legais próprios das conflagrações,
arcando com o ônus das invitáveis perdas colaterais e dos abusos praticados por
agentes do Estado abrigados na legislação de exceção. Qual o mal menor? Quem
tem mais sensibilidade social? Quem acha pouco o sofrimento dos pobres
submetidos ao poder das facções ou quem aceita alguns sacrifícios temporário
para enfrentar a guerra?
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