quinta-feira, 11 de abril de 2019

ARTIGO - Guerras e Perdas (RMR)


GUERRAS E PERDAS
Rui Martinho Rodrigues*


Soldados efetuaram oitenta disparos contra um carro. Nele havia uma família. Não teria havido ordem de parar, nem tiros de advertência. A patrulha era de dez soldados, que é um grupo de combate. Usava fuzis de guerra. Os integrantes certamente eram jovens de 19 anos, prestando serviço militar.

Estamos em abril, seriam incorporados em janeiro? Talvez. Patrulha de 10 soldados não faz trabalho policial, mas operação de guerra. Policiais andam em dupla, ou até sozinhos. O uso de fuzis não é típico de atividade policial. Jovens de 19 anos, prestando serviço militar, recém-incorporados, com poucos meses de treinamento básico, não estão preparados para o dificílimo trabalho de guerra urbana.

A situação é de conflagração. Ao longo do ano de 2018, a cada dois ou três dias, um policial foi assassinado no Rio. Bandidos estão equipados com armas de guerra. As tropas do crime são numerosas, enfrentam batalhões inteiros. O equipamento delas já abateu até helicópteros. Estatísticas indicam mais de 60 mil mortos no País em um ano. Pode ser muito mais. Não propriamente por sub-registro, já que mortes geralmente são notificadas. Mas existem registros lançados equivocadamente em categorias diferenciadas. Desaparecidos são centenas de milhares. Dez por cento destes podem ter sido assassinados. O número de vidas ceifadas deve ser muito maior.

Facções criminosas exercem domínio de território, impõem leis, obrigando motoristas a baixar vidros, ligar lâmpadas internas, exigem cópia de chave da residência de moradores de certas áreas e despejam famílias. Não é exercício de fantasia dizer que os jovens soldados que patrulham as ruas do Rio o fazem apavorados. Nem se pode esperar que combatentes tomados pelo medo, em uma guerra, sacrifiquem a própria segurança para evitar erros potencialmente trágicos. Em toda guerra ocorrem perdas colaterais.

Tragédias como esta, dos oitenta tiros contra um carro com inocentes, trazem de volta o tema das políticas públicas, presença do Estado, educação e outras medidas de maior alcance do que aquelas típicas de guerra. É bom pensar em fazer a casa, mas quando ela está em chamas é preciso combater o fogo. Não se fazem guerras sem leis excepcionais, cuja duração deve ser limitada no tempo. Nem se exclui a possibilidade de perdas colaterais no transcurso de uma conflagração. Tais medidas ensejam práticas abusivas indesejáveis.

A escolha de Sofia que se nos apresenta tem como primeira opção aceitarmos um longo e tenebroso sofrimento na mão de bandidos que despejam famílias de suas casas, exigem cópia de chaves das residência para ter acesso a elas quando bem queiram e entendam, arvoram-se ao “direito” de requisitar uma filha mocinha do pobre para a prestar serviços sexuais, usar a residência do pobre como depósito de drogas, recrutar filho do pobre para as facções criminosas etc., esperando pelo resultados de políticas públicas que não diminuíram a criminalidade nos seis últimos governos dotados de “sensibilidade social”. Houve o contrário: a delinquência cresceu.

A opção número dois consiste em buscar a implementação de políticas públicas, analogamente ao esforço de construção da casa, mas combater o incêndio, fazer guerra com instrumentos legais próprios das conflagrações, arcando com o ônus das invitáveis perdas colaterais e dos abusos praticados por agentes do Estado abrigados na legislação de exceção. Qual o mal menor? Quem tem mais sensibilidade social? Quem acha pouco o sofrimento dos pobres submetidos ao poder das facções ou quem aceita alguns sacrifícios temporário para enfrentar a guerra?


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