DESESPERO
Rui Martinho Rodrigues*
O Presidente do STF quebrou a regra da inércia do Judiciário ao
tomar a iniciativa da persecução penal movida contra divulgadores de notícias supostamente falsas. Procurou escudar-se no Regimento Interno do STF, mas não
convenceu. Foi o primeiro choque de uma série. Violou a exclusividade da
competência constitucional do Ministério Público (MP) concernente ao exercício
deste mister, segunda perplexidade. Designou o relator para o caso como escolha
discricionária, ao invés de sorteio, terceira surpresa. O inquérito assim
instaurado não teve clara definição do objeto, quarta irregularidade.
A Procuradora Geral da República, Raquel Ellias Ferreira Dodge,
manifestou-se contrariamente à iniciativa. O relator, Alexandre de Morais,
ignorou a decisão da mais alta autoridade do MP. Nas instâncias inferiores o MP
apenas recomenda o arquivamento de inquéritos ou processos porque o magistrado
poderá recorrer ao nível superior do MP.
A recusa da chefe da PGR, porém, emana
do mais alto nível do Parquet. O Judiciário não tem a quem recorrer contra ela.
A questão, portanto, deveria terminar neste ponto. Raquel Dodge deveria ter
comunicado ao STF a decisão de arquivamento do feito. Não é o caso de emitir
parecer. O desprezo para com a decisão do MP, demonstrado pelo relator,
ministro Alexandre de Morais, é o quinto movimento nesse jogo enigmático e estranho
ao Direito.
O relator mandou retirar matéria jornalística de dois veículos de
comunicação. A iniciativa de promover uma ação contra jornalistas e cidadãos que
se pronunciam pela internet, sem perder nenhuma oportunidade de incorrer em
irregularidades, não bastou. Era preciso cercear a liberdade de informação.
Temos o sexto desrespeito ao Direito em um só caso.
As múltiplas possibilidades de interpretação, gerando divergências,
é natural em matéria jurídica. Existem, não obstante, limites para o “entendimento
livre” do magistrado, que deve ser “fundamentado” na lei, Jurisprudência, hermenêutica
e doutrina. Neste caso a jurisprudência do STF foi quebrada, a doutrina
constitucional ignorada, a literalidade do ordenamento pátrio rasgada, na
positividade da sua literalidade – que não se confunde com literalismo, como
positividade não se confunde com positivismo.
Quantos jovens foram reprovados nas faculdades e exames de ordem
por errar muito menos do que os supremos ministros. O que teria levado
magistrados experimentados, e auxiliados por assessores qualificados, a cometer
erros tão elementares. A judicialização da política resulta na politização do
Judiciário. A política é um campo conflagrado.
As relações sociais em geral estão sofrendo intenso processo de
judicialização, por força da constitucionalização do Direito privado. A
Constituição analítica, dirigente e programática, que positivou princípios
anteriormente usados para cobrir lacunas da lei, deu ao Judiciário enorme poder
político.
O grande prestígio de novas doutrinas encorajadoras do ativismo
judicial, da banalização autopoiese do Direito, da ampliação das garantias
constitucionais para o campo das relações horizontais potencializam a
politização do Judiciário.
A embriaguez do Poder desorienta. Tantos erros juntos lembram os
sinais e sintomas do uso excessivo de álcool. Reação tão forte diante da
notícia de um fato objetivo como a existência de um acordo de colaboração
negociada, contendo tal acordo declarações comprometedoras de autoridade não
deveria provocar reação tão desesperada. O tempo, provavelmente, dará resposta
para a indagação: qual o motivo da atitude tão desarvorada na mais alta corte?
COMENTÁRIO
Ninguém se dispõe a
enfrentar um leão com um canivete. Mas, se um leão atacar, e a pessoa só
dispuser de um canivete...
O Ministro Dias Toffoli
certamente sabe – e se não sabia deve ter sido advertido pela sua assessoria – que
o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal não passa de um canivete,
comparado ao arsenal normativo da Carta da República, da qual todo o
ordenamento jurídico dimana.
Obviamente Toffoli também
previa a repercussão negativa de seus atos, juridicamente teratológicos –
quebrando a regra da inércia do Poder Judiciário, que precisa ser provocado,
pela parte ou pelo Ministério Público. Não pode, de ofício, acusar, investigar
e julgar causa nenhuma, o que só nas ditaduras acontece.
Ademais, conforme observa Rui Martinho Rodrigues, não podia o
Presidente do Supremo designar relator para a sua ação esdrúxula, pois o
princípio jurídico da impessoalidade impõe a escolha randômica do juiz, a
nomeação aleatória, o sorteio entre os competentes juízes naturais – e de tanto
saber disso ele já está quase careca.
Mas o leão está
faminto e a carne é fresca, e não vale morrer sem esgrimir de alguma forma. Tem-se
um homem acuado, agindo em desespero, contra a fera da “CPI da Lava Toga”, que é inexorável. O
pica-fumo suíço poderia, quem sabe, acertar ponto sensível do felino, antes da
mordida fatal, fazendo-o, talvez, recuar. Mas aconteceu o mais provável. Foi um
tiro pela culatra. A censura a um veículo de imprensa fez repercutir a sua
denúncia na mídia inteira, multiplicando o efeito que a interdição pretendia evitar, e diversos estamentos da Justiça, até mesmo alguns
dos supremos pares, caíram de unhas e dentes sobre a “vítima”.
A rede social da internet ruge contra ele; a imprensa nacional lhe mostra as presas; Senadores da República pressionam o Presidente da Casa
para pautar um dos pedidos de impeachment
contra integrantes do Tribunal, que têm participado de julgamentos sem
reconhecer a sua patente suspeição, incorrendo em evidente conflito de
interesses.
Enfim, ironicamente,
era das Forças Armadas, sob o Presidente Bolsonaro, que se temia retrocesso
autoritário. “De onde menos se espera, é dali que sai”, como diz o velho ditado.
Reginaldo Vasconcelos
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