AS ORIGENS DO MAL
Rui Martinho Rodrigues*
John Locke (1632 – 1704), na “Carta Sobre a Tolerância”, enfatiza a
liberdade de consciência. Defende a separação entre Estado e religião. Propõe
como limite à circulação de ideias a vedação ao que atenta contra a vida, a
liberdade e a propriedade. Era preocupado com gnosiologia e o seu pensamento
concernente às liberdades políticas guarda relação com a teoria do conhecimento
por ele formulada. Desconfiava da validade das cogitações teóricas. A
falibilidade de tais elaborações é a base da tolerância do seu pensamento. A
certeza indubitável afasta a tolerância, que se abriga na dúvida.
A liberdade de consciência é a base de todas as liberdades. O pensamento
totalitário é filho do cientificismo. Desde a Antiguidade Clássica o debate
sobre a epistemologia da certeza repercutia no pensamento político. Platão
(428/27 – 348/7a.C), na República, desclassifica o senso comum, confundindo os
juízos de valor da política com os juízos de realidade da técnica, dizendo que
ninguém contrata um comandante de navio ou um construtor que não tenha
conhecimentos sólidos nestes campos.
Karl Raymond Popper (1902 – 1994) classifica Platão como inimigo da
sociedade aberta em razão do pensamento cujo fundamento de validade para a
legitimidade política é o saber filosófico, que então não se diferenciava de
ciência. O iluminismo (ou ilustração), na modernidade, buscou inspiração na
Física. A desconsideração da condição de sujeito dos agentes dos fenômenos
sociais e da irregularidade que daí resulta, afastando o conhecimento
nomológico, escapou à percepção de grandes pensadores.
A presunção de ter o domínio de supostas leis da História e o
determinismo que daí resulta, estimularam a ambição de uma ciência social
normativa, o vaticínio dos rumos da humanidade e a visão da experiência humana
como uma marcha triunfal chamada “progresso”.
Alain Torene (1925 – ?) e Sérgio Paulo Rouanet (1934 – ?), entre
outros, questionam a marcha evolutiva, no sentido de avanço para estágios
superiores. Consideram que o triunfalismo precisaria mostrar o aperfeiçoamento
das relações entre os homens; destes com a natureza; e do indivíduo consigo
mesmo. Tal não acontece.
Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra História e memória, admite
avanços em áreas específicas, como a ciência, a técnica e a organização jurídico-política.
Mas não reconhece avanços nas relações individuais, nem o progresso do homem.
Ser “progressista” enche de orgulho aqueles a quem Thomas Sowell (1930 – ?), na
obra Os intelectuais e a sociedade, classifica como “intelectuais ungidos”. A
unção é o saber presumidamente apto a determinar as formas da sociedade e vaticinar
o seu destino.
Certeza, dever ser, superioridade moral e intelectual são sementes
do mal. O totalitarismo não defende interesses, mas certezas axiológicas, como
igualdade e justiça, escamoteando a natureza polêmica de tais concepções.
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) dizia: não importa ser virtuoso, mas aparentar
virtude.
A ética teleológica contribui para que os fins possam legitimar as
maiores torpezas. Este messianismo político precisa de uma vítima para
defender, um perseguidor para enfrentar, e um D. Quixote salvador. O maniqueísmo
sectário e uma teoria do “progresso” a partir do conflito social municiam o
discurso totalitário. A convicção e as virtudes invocadas sacralizam o que
aparentemente é secular. A permissividade epistemológica e o titanismo
romântico cegam para a realidade.
Eis as raízes do totalitarismo. Sem estas coisas pode existir
autoritarismo, mas não totalitarismo.
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