quarta-feira, 30 de novembro de 2016

CRÔNICA - Salvo por Um Suicídio (AM)


SALVO POR UM SUICÍDIO
Assis Martins*


[...] mas, diante de tantas lembranças, me ponho a chorar [...]
LUIZ ANTÔNIO, compositor musical brasileiro).


Os mecanismos da memória são prodigiosos, não sei por quais processos físico-químicos, em selecionar alguns episódios da nossa infância e apagar a maioria. Um ano do qual ainda guardo algumas lembranças é 1954.

Pesquisando os acontecimentos desse período na Fortaleza de quase 300 mil habitantes, anotei alguns, aleatoriamente: a instalação do Banco do Nordeste; a inauguração do Instituto de Previdência do Município (IPM) pelo prefeito Paulo Cabral de Araújo na sua terceira administração; a fundação do Lions Clube de Fortaleza. 

A criação do Serviluz (Serviço de Luz e Força do Município de Fortaleza); a primeira exibição pública da televisão, realizada pela Ceará Rádio Clube na Praça dos Voluntários e no térreo do Edifício Pajeú, e o acontecimento principal que movimentou e comoveu a opinião pública: o suicídio do presidente Getúlio Vargas, no dia 24 de agosto.

É claro que esses fatos não eram do meu conhecimento, haja vista que o pensamento era ocupado com as coisas atinentes à minha idade: as peladas na Rua do Imperador, no quarteirão do Patronato N. S. Auxiliadora, as investidas aos quintais para tirar carrapateiras (pés de mamona – Ricinus communis) que serviriam de munição na caça aos calangos, e os intermináveis duelos de arraias (hoje são pipas), guerrinhas onde, reconheço, sempre fui um fracasso!

Dentre tantos eventos da infância, as circunstâncias daquele 24 de agosto de 1954 a mim não o deixaram esquecer. Logo de manhã cedo, minha mãe me levou, um tanto à força, para o primeiro dia de aula na Escola Pinto Machado, que funcionava nas dependências do Centro Artístico Cearense, localizado na esquina da Av. Duque de Caxias com a Rua (nesse tempo) Tristão Gonçalves, onde atualmente funciona uma loja de material de construção.

Em todos os meus escritos sobre minha infância, sempre aparece alguma coisa sobre o Centro, referência de uma época em que nossas tradições e cultura tinham valor. O Centro Artístico Cearense foi fundado no dia 8 de fevereiro de 1904, funcionando na Rua Major Facundo, 141, mudando-se em 1912 para a sua sede definitiva no endereço citado. Os intelectuais naquela época eram mais engajados na vida política da cidade e o Centro lançou, na sua inauguração, um manifesto contra o governo Acioli.

O Cine Centro foi inaugurado um pouco antes do decênio de 1930 e se tornou o máximo em divertimento da nossa juventude nos anos 1960-70. As sessões vesperais dos domingos exibiam séries imperdíveis: Nioka, a Rainha das Selvas, Flash Gordon no Planeta Mongo, O Império Submarino. Para uma meninada que ainda não tinha televisão nem aparelho celular e não podia se alienar no maravilhoso mundo virtual das redes sociais, aquele divertimento era o máximo!

A Escola Pinto Machado, surgida tempos depois, foi um marco na minha vida. Não sei bem como fui conduzido até lá, mas me recordo de que travei logo na entrada, pois estava apavorado com a figura temível da diretora que estava esperando no fim do corredor. Eu ouvira falar que ela era muito severa e castigava os malcomportados com uma palmatória de sola. A cena congelou por uns segundos: na porta, eu, vacilante, um sentenciado ao encontro do carrasco. No lado oposto, a terrível diretora, aos meus olhos, um gigante ameaçador que iria receber um indefeso Davi, sem uma funda, cujas armas disponíveis eram apenas um lápis e um caderno Avante!

Fui salvo “em cima das buchas” por um rebuliço repentino que tomou conta do ambiente. Era um corre-corre danado, gente entrando e saindo e eu, sem entender nada, inopinadamente, já estava sendo levado de volta para casa. Só me lembro de que o comentário era um só: o presidente Getúlio se matou!

E assim, naquele dia, não houve aula e eu fiquei muito alegre. Só que as surpresas viriam depois no decorrer do ano letivo, quando pude perceber que a professora não era a fera que diziam; até comecei a gostar dela, apesar dos seus métodos rígidos na disciplina. Hoje reconheço o bom aproveitamento que fiz do curso primário, confirmando o vaticínio de minha mãe: – Esse menino vai “desarnar” na escola Pinto Machado!

Os meninos daquela geração eram levados a desenvolver um senso de cidadania, a respeitar os valores éticos e também morais, acima de tudo. Os símbolos nacionais eram respeitados, principalmente os hinos. Cantavam-se, diariamente, o Hino Nacional, algumas vezes o do Estado e os das datas significativas, como o Dia da Árvore (“Protejam as florestas do Brasil, lhes pede o Serviço Florestal...”) e outros. Alguns métodos empregados hoje nos fazem rir. Por exemplo, aos sábados tínhamos de escrever em várias folhas do caderno o nosso nome com a mão esquerda, para o caso de alguma impossibilidade.

O Centro Artístico Cearense foi tombado pela Lei Municipal nº 63, de 18 de junho de 1988 e demolido em 2000.

Hoje, quando passo naquela esquina – e o faço com frequência – o meu olhar não é só de saudade, mas também de pena em ver o menoscabo que os governantes têm com o nosso patrimônio arquitetônico, ocupados que estão em construir viadutos e areninhas em troca de votos.


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