SALVO POR UM SUICÍDIO
Assis Martins*
[...] mas, diante de tantas
lembranças, me ponho a chorar [...]
– LUIZ ANTÔNIO, compositor musical brasileiro).
Os mecanismos
da memória são prodigiosos, não sei por quais processos físico-químicos, em
selecionar alguns episódios da nossa infância e apagar a maioria. Um
ano do qual ainda guardo algumas lembranças é 1954.
Pesquisando os
acontecimentos desse período na Fortaleza de quase 300 mil habitantes, anotei
alguns, aleatoriamente: a instalação do Banco do Nordeste; a inauguração do
Instituto de Previdência do Município (IPM) pelo prefeito Paulo Cabral de
Araújo na sua terceira administração; a fundação do Lions Clube de Fortaleza.
A criação do Serviluz (Serviço de Luz e Força do Município de Fortaleza); a primeira
exibição pública da televisão, realizada pela Ceará Rádio Clube na Praça dos
Voluntários e no térreo do Edifício Pajeú, e o acontecimento principal que
movimentou e comoveu a opinião pública: o suicídio do presidente Getúlio Vargas, no dia 24 de agosto.
É claro que
esses fatos não eram do meu conhecimento, haja vista que o pensamento era
ocupado com as coisas atinentes à minha idade: as peladas na Rua do Imperador, no quarteirão do Patronato N. S. Auxiliadora, as investidas aos quintais para
tirar carrapateiras (pés de mamona – Ricinus
communis) que serviriam de munição na caça aos calangos, e os intermináveis
duelos de arraias (hoje são pipas), guerrinhas onde, reconheço, sempre fui um
fracasso!
Dentre tantos
eventos da infância, as circunstâncias daquele 24 de agosto de 1954 a mim não o
deixaram esquecer. Logo de manhã cedo, minha mãe me levou, um tanto à força,
para o primeiro dia de aula na Escola Pinto Machado, que funcionava nas
dependências do Centro Artístico Cearense, localizado na esquina da Av. Duque
de Caxias com a Rua (nesse tempo) Tristão
Gonçalves, onde atualmente funciona uma loja de material de construção.
Em todos os
meus escritos sobre minha infância, sempre aparece alguma coisa sobre o Centro,
referência de uma época em que nossas tradições e cultura tinham valor. O
Centro Artístico Cearense foi fundado no dia 8 de fevereiro de 1904, funcionando
na Rua Major Facundo, 141, mudando-se em 1912 para a sua sede definitiva no
endereço citado. Os intelectuais naquela época eram mais engajados na vida
política da cidade e o Centro lançou, na sua inauguração, um manifesto contra o
governo Acioli.
O Cine Centro
foi inaugurado um pouco antes do decênio de 1930 e se tornou o máximo em
divertimento da nossa juventude nos anos 1960-70. As sessões vesperais dos
domingos exibiam séries imperdíveis: Nioka,
a Rainha das Selvas, Flash Gordon no
Planeta Mongo, O Império Submarino.
Para uma meninada que ainda não tinha televisão nem aparelho celular e não
podia se alienar no maravilhoso mundo virtual das redes sociais, aquele
divertimento era o máximo!
A Escola Pinto
Machado, surgida tempos depois, foi um marco na minha vida. Não sei bem como
fui conduzido até lá, mas me recordo de que travei logo na entrada, pois estava
apavorado com a figura temível da diretora que estava esperando no fim do
corredor. Eu ouvira falar que ela era muito severa e castigava os
malcomportados com uma palmatória de sola. A cena congelou por uns segundos: na
porta, eu, vacilante, um sentenciado ao encontro do carrasco. No lado oposto, a
terrível diretora, aos meus olhos, um gigante ameaçador que iria receber um
indefeso Davi, sem uma funda, cujas armas disponíveis eram apenas um lápis e um
caderno Avante!
Fui salvo “em
cima das buchas” por um rebuliço repentino que tomou conta do ambiente. Era um
corre-corre danado, gente entrando e saindo e eu, sem entender nada,
inopinadamente, já estava sendo levado de volta para casa. Só me lembro de que
o comentário era um só: o presidente Getúlio se matou!
E assim,
naquele dia, não houve aula e eu fiquei muito alegre. Só que as surpresas
viriam depois no decorrer do ano letivo, quando pude perceber que a professora
não era a fera que diziam; até comecei a gostar dela, apesar dos seus métodos
rígidos na disciplina. Hoje reconheço o bom aproveitamento que fiz do curso
primário, confirmando o vaticínio de minha mãe: – Esse menino vai “desarnar” na escola Pinto Machado!
Os meninos
daquela geração eram levados a desenvolver um senso de cidadania, a respeitar
os valores éticos e também morais, acima de tudo. Os símbolos nacionais eram
respeitados, principalmente os hinos. Cantavam-se, diariamente, o Hino
Nacional, algumas vezes o do Estado e os das datas significativas, como o Dia
da Árvore (“Protejam as florestas do Brasil, lhes pede o Serviço Florestal...”)
e outros. Alguns métodos empregados hoje nos fazem rir. Por exemplo, aos
sábados tínhamos de escrever em várias folhas do caderno o nosso nome com a mão
esquerda, para o caso de alguma impossibilidade.
O Centro
Artístico Cearense foi tombado pela Lei Municipal nº 63, de 18 de junho de 1988
e demolido em 2000.
Hoje, quando
passo naquela esquina – e o faço com frequência – o meu olhar não é só de
saudade, mas também de pena em ver o menoscabo que os governantes têm com o
nosso patrimônio arquitetônico, ocupados que estão em construir viadutos e
areninhas em troca de votos.
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