segunda-feira, 12 de setembro de 2016

CRÔNICA - Comida (SQ)

Comida
Sávio Queiroz*


“Por que gastar dinheiro naquilo que não é pão, e o seu trabalho árduo naquilo que não satisfaz? Escutem, escutem, e comam o que é bom, e a alma de vocês se deliciará com a mais fina refeição”. (Isaías 55:2 – NVI)


Vivemos em um mundo em que comer virou um ato de transgressão, quase revolucionário.

Comer vem gradativamente deixando de ser um prazer, um restauro para o corpo e para a alma, um momento de prazer e elevação, transformando-se em uma ditadura.

Estamos cercados por sucos e sopas detox, alimentos funcionais, suplementos alimentares, comida sem sal, livre de gorduras trans, sem aditivos ou conservantes, sem glúten, sem lactose, sem colesterol, sem açúcar, sem gosto e sem charme.

Na minha infância comíamos de tudo, se duvidar até a cal das paredes. Hoje temos uma geração de alérgicos, intolerantes a um sem numero de “derivados” e com sérios distúrbios alimentares.

O homem pré-histórico era onívoro (esse comia mesmo de tudo). Hoje penso que estamos a um passo de comer o “Green Soilent" do clássico da ficção científica "No mundo de 2020" de 1973. No filme, estrelado por Charlton Heston, a população pobre de Nova Iorque, consome apenas um tablete verde produzido inicialmente com algas, mas que esconde uma verdade estarrecedora.

Vivemos a ditadura do brócolis, onde visceras foram banidas e em breve estaremos comendo escondido até uma pequena porção de torresmo.

As comidas de mercado, notadamente as preparadas com visceras, fazem parte de uma lista negra. O velho e bom sarapatel, a dobradinha, a buchada, a panelada, o sarrabulho e até alguns dos mais famosos pratos da culinária francesa como as Tripes à la mode de Caen e os Tournedos Rossini integram a lista.

Aliás, falar de Tournedos Rossini é quase um crime já que a receita inclui peças de filé mignon grelhadas, acompanhadas de uma generosa fatia de foie gras, também grelhado.

Pierre-Auguste Renoir - Le déjeuner des canotiers
Óleo sobre tela - Circa 1880 - 129 cm × 172 cm
The Phillips Collection, Washington, DC

É que Foie gras virou palavrão. A iguaria, resultante de uma cirrose alimentar induzida em patos ou gansos, resultante de um método milenar conhecido como gavage, em que os animais são forçados a se alimentar é atacada por ecoterroristas e foi até banida, por lei, dos restaurantes de algumas cidades.

Tenho um certo estranhamento, poderia até dizer preconceito, com a comida muito verde. É bonita, deve fazer bem, mas nunca me convidem para tomar um suco de couve ou comer uma salada de rúcula e endívias. Sempre acho que quem diz que come porque gosta, ou está mentindo ou tentando se convencer.

Por outro lado, sou fã incondicional de queijos, mas os amarelos e duros. Aqueles com pequenos cristais de sal, curtidos e esquecidos por meses em cavernas escuras para que revelem seu real sabor. Gosto dos “podres” também, azuis e verdes, com seu bolor característico.  

Mas o que “faz bem” são aqueles brancos e moles como ricota ou cottage, tido como o mais “magrinho” dos queijos. Uma pasta insossa, branca e com um gosto similar a papel.

Abro uma exceção ao notável queijo português “Serra da Estrela”, feito com leite não pasteurizado de ovelhas e por isso perseguido pela vigilância sanitária brasileira.

Níkos Kazantzákis, em seu magistral “Zorba, o grego” nos fala: “Diz-me o que fazes do que comes e te direi quem és. Existe quem transforme isso em toucinho e em excrementos, outros em trabalho e bom humor; e outros, segundo já ouvi dizer, em Deus”.

Sendo assim, continuarei a minha saga por descobrir novos sabores, em busca do divino, da longa e prazerosa conversa à mesa com amigos, regada a bons pratos e bons vinhos.
 


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