Comida
Sávio Queiroz*
“Por que gastar dinheiro naquilo que não é pão, e o seu
trabalho árduo naquilo que não satisfaz? Escutem, escutem, e comam o que é bom,
e a alma de vocês se deliciará com a mais fina refeição”. (Isaías 55:2 – NVI)
Vivemos em um mundo em que comer virou um ato de
transgressão, quase revolucionário.
Comer vem gradativamente deixando de ser um prazer,
um restauro para o corpo e para a alma, um momento de prazer e elevação,
transformando-se em uma ditadura.
Estamos cercados por sucos e sopas detox, alimentos funcionais,
suplementos alimentares, comida sem sal, livre de gorduras trans, sem aditivos
ou conservantes, sem glúten, sem lactose, sem colesterol, sem açúcar, sem gosto
e sem charme.
Na minha infância comíamos de tudo, se duvidar até a
cal das paredes. Hoje temos uma geração de alérgicos, intolerantes a um sem
numero de “derivados” e com sérios distúrbios alimentares.
O homem pré-histórico era onívoro (esse comia mesmo
de tudo). Hoje penso que estamos a um passo de comer o “Green Soilent" do
clássico da ficção científica "No mundo de 2020" de 1973. No filme, estrelado
por Charlton Heston, a população pobre de Nova
Iorque, consome apenas um tablete verde produzido inicialmente com algas, mas que esconde uma verdade estarrecedora.
Vivemos a
ditadura do brócolis, onde visceras foram banidas e em breve estaremos comendo
escondido até uma pequena porção de torresmo.
As comidas
de mercado, notadamente as preparadas com visceras, fazem parte de uma
lista negra. O velho e bom sarapatel, a dobradinha, a buchada, a panelada, o
sarrabulho e até alguns dos mais famosos pratos da culinária francesa como as Tripes à la mode de Caen e os Tournedos Rossini integram a lista.
Aliás,
falar de Tournedos Rossini é quase um
crime já que a receita inclui peças de filé mignon grelhadas, acompanhadas de uma generosa fatia de foie gras, também grelhado.
Pierre-Auguste Renoir - Le déjeuner des canotiers
Óleo sobre tela - Circa 1880 - 129 cm × 172 cm
The Phillips Collection, Washington, DC
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É que Foie gras virou palavrão. A iguaria,
resultante de uma cirrose alimentar induzida em patos ou gansos, resultante de um método
milenar conhecido como gavage, em que os animais são forçados a se alimentar é atacada por
ecoterroristas e foi até banida, por lei, dos restaurantes de algumas cidades.
Tenho um certo estranhamento, poderia até dizer
preconceito, com a comida muito verde. É bonita, deve fazer bem, mas nunca me
convidem para tomar um suco de couve ou comer uma salada de rúcula e endívias.
Sempre acho que quem diz que come porque gosta, ou está mentindo ou tentando se
convencer.
Por outro lado, sou fã incondicional de queijos, mas
os amarelos e duros. Aqueles com pequenos cristais de sal, curtidos e
esquecidos por meses em cavernas escuras para que revelem seu real sabor. Gosto
dos “podres” também, azuis e verdes, com seu bolor característico.
Mas o que “faz bem” são aqueles brancos e moles como
ricota ou cottage, tido como o mais “magrinho” dos queijos. Uma pasta insossa,
branca e com um gosto similar a papel.
Abro uma exceção ao notável queijo português “Serra
da Estrela”, feito com leite não pasteurizado de ovelhas e por isso perseguido
pela vigilância sanitária brasileira.
Níkos Kazantzákis, em seu magistral “Zorba, o grego”
nos fala: “Diz-me o que fazes do que comes e te direi quem és. Existe quem
transforme isso em toucinho e em excrementos, outros em trabalho e bom humor; e
outros, segundo já ouvi dizer, em Deus”.
Sendo assim, continuarei a minha saga por descobrir
novos sabores, em busca do divino, da longa e prazerosa conversa à mesa com
amigos, regada a bons pratos e bons vinhos.
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