sábado, 14 de março de 2020

DUAS CRÔNICAS DA NOITE (RV)


A NOITE É UM PRÊMIO
Reginaldo Vasconcelos*

(Ao Leonardo Braga, ao Máximo Henrique e à Eugenia Monteiro)

A noite é um prêmio, e não há quem desvende os segredos da sorte. O dia suarento se esvaziou. A campainha toca. Dos melhores amigos, um me procura, e é só de raro em raro. Há no baú do peito coisas novas e outras nem tanto, mas sempre novidades para contar. E a faca amolada da confiança rasga o íntimo: sangra aliviado o peito repleto.

A chuva rebenta em meio ao assunto e assunta novo tema. Bebemos um pouco. Saímos na noite para desfrutar a chuva e cuidar da vida. Vamos às oficinas do Jornal e lemos na edição que as máquinas ainda mastigam, o artigo elaborado que se antecipa ao pão da madrugada.

E saímos no mundo. Para usar a velha frase dos bêbados, “a noite é uma criança”. No bar incerto, um meio-amigo, amigo e meio. Bebe-se à vontade, fala-se do que se tem e serve-se à memória o melhor petisco. À memória vêm as pessoas, amadas pessoas que não estão na paisagem.

Com pouco a paisagem se enriquece porque aparecem pessoas que o pensamento embalava. Ficam de longe, como num filme, ou não ficam e se vão pela rua, mas fica o gosto bom de pensar e ver. A noite é mesmo uma criança, e é também um prêmio. E ninguém desvenda os caprichos da sorte.  

Diário do Nordeste – Agosto/1984 






 VELHO AMIGO
Reginaldo Vasconcelos

(Ao Ricardo Castro)

Saio dentro da noite, para espairecer e procurar inspiração, e o acaso me põe sentado numa mesa de lanchonete. Percebo logo, aquele é o lugar da moda para a rapaziada do bairro, que não respeita a madrugada.

O caixa cochila sobre a registradora, mas a freguesia é insone; chegam e saem como abelhas laboriosas, cumprimentam-se com beijos e com palavras vagas. Identifico uma meia-dúzia entre aqueles bebedores de Coca-Cola do tempo do colégio.

Numa visão global, as moças me parecem bem mais fortes que os rapazes, porque têm mais o que dar, porque emprestam graça, e talvez um dia sejam mães de outros bobalhões iguais àqueles. A fumaça do cigarro é mais densa que o assunto que se evola, ideias sem nobreza em palavras de matéria plástica.

O ambiente é leve e belo, festivo e quotidiano ao mesmo tempo. A solidão, para mim, é a grande novidade, porque quase nunca fico só. Durante longos minutos permaneci ali sem ter a quem ouvir, ou com quem falar, além de alguma vez acenar de leve, permanecendo imerso em mim mesmo.

De repente surge junto à minha mesa um velho amigo. Não sei de onde saiu para estender-me a mão, sentar comigo, apresentar alguém que se foi e alguém que ficou e sentou também, como se houvéssemos marcado ali um encontro de gângsteres.

Fechei de súbito a oficina do pensamento, para recebê-los na sala de visitas do coração. Já não sou mais eu, somos nós, conversas e recordações. Os rapazes que me apresentou são seus irmãos, disse na hora, percebi depois.

Há empreendimentos em curso, conta, pede reserva. Falo um pouco de mim, trocamos ideias, para no fim falarmos somente de mulheres. Mas não falamos nas mulheres do passado – e aí a conversa é um pega-varetas. Em mim e nele há lembranças ácidas.

Descobrimos em seguida alguma coisa que um pode fazer pelo outro e anotamos os telefones. Com a mesma chama acendemos o cachimbo e o cigarro, nos despedimos como quem não demora a se rever, e mergulhamos de novo no baralho das ruas. Em troca da privacidade a relembrança. Assim nasce a crônica. 

Diário do Nordeste - Outubro/1984


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