terça-feira, 26 de junho de 2018

CRÔNICA - Felizômetro (RV)

FELIZÔMETRO
Reginaldo Vasconcelos*


Não costumo jogar na loteria, mas quando o faço sempre me assalta um receio-paradoxo: ganhar o prêmio e me tornar infeliz. 

Ainda não inventaram o “felizômetro”, imaginário medidor do contentamento íntimo, cujo ponteiro se elevaria por ocasião dos momentos de euforia, mas que não se manteria elevado, necessariamente, pela simples obtenção de cabedal financeiro e patrimônio.

O ouro pesa muito. Custa obtê-lo, pesa mantê-lo, pesa como chumbo o risco de perdê-lo, porque perdê-lo não é tão simples como nunca tê-lo tido. A privação franciscana pode enobrecer pela humildade, mas costuma aviltar, pela humilhação, os que a ela retornam de inopino. Depois, nas partilhas, o ouro vira chumbo trocado, gerando ódio entre os consanguíneos.

Ademais, ser feliz é sentir-se útil, e os abastados vão perdendo a sua utilidade pessoal para o utilitarismo do dinheiro que possuem. Valem pelo que têm, e intimamente sabem disso. Ser feliz é sentir-se amado... Mas, como distinguir o afeto verdadeiro da mulher bela, do amigo prestimoso, do filho herdeiro?

Tenho vitimado alguns, involuntário, pelos ácidos da inveja  por ser feliz, não por ser rico, que não sou e nunca fui. Mas certa vez matei um homem, inadvertido, com os insuspeitados venenos de sua prosperidade pessoal.

Era mecânico, dono de uma caixa de ferramentas, e vivia de biscates. Fora alcoólatra, era abstêmio, pelos  conselhos evangélicos de uma Igreja. Morava distante, tinha uma filhinha, era feliz.

Quis ajuda-lo, montei para ele uma oficina em prédio próprio em bairro nobre, anexa a uma casa de morada em que instalou a família, e onde a mulher passou a explorar um manicuro. Recomendei clientela vasta.

Prosperou, voltou a beber, comprou um carro e envolveu-se em acidente tenebroso, perdendo a vida e produzindo viuvez e orfandade. É o mesmo processo que mata, tanto os novos ricos como os filhos da fortuna. O fogo da abastança, a possibilidade de todos os excessos, os cães bajuladores que lhes lambem as feridas, sonhando devorar-lhes as carnes tenras.

Enfim, se o ponteiro do “felizômetro” está no alto, o prêmio da loteria é perigoso de fato. O desejo moderado e a consecução gradual têm mais valor intrínseco que o objeto desejado. “A conquista é tudo, o resto é quase nada”, como reza a sabedoria popular.

Não. A felicidade não é privilégio da pobreza. Não iria eu zurrar tamanha asneira. Até pelo contrário, o que digo é que esse privilégio também não é dos ricos, mas apenas dos sábios de qualquer classe econômica, que sabem jogar corretamente com as suas circunstâncias. 

É comum pensar-se erroneamente que são sempre felizes os que nascem em berço áureo, ou que encontram o veio precioso, às vezes com menos esforços que outros garimpeiros. Porém, os mais afortunados de fato são aqueles que conhecem o segredo filosófico do cofre dos sorrisos.


Nota: Do livro Traços da Memória - Laços da Província - Volume II  – Crônicas –Multigraf Editora – Fortaleza – 1993.
       
   


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