domingo, 24 de julho de 2016

CRÔNICA - Vendedor Ambulante (TL)


VENDEDOR AMBULANTE
Totonho Laprovitera*


Ambulante é aquele vendedor que anda pelas ruas da cidade anunciando a sua mercadoria.

Quando a Governador Sampaio era a rua chique de Fortaleza, o ambulante Otelino alimentava um certo fascínio por Maria de Jesus, uma jovem senhora que tornara-se viúva antes do tempo. 

Sendo de boa e tradicional família fortalezense, De Jesus era bem guardada que só. Portanto, tornava-se bastante difícil qualquer marmanjo furar o cerco composto pelo seu mal-encarado pai e corpulentos irmãos. Falar com ela, só de longe e olhe lá!

Daí, cheio de gracejos, Otelino pegava o seu tabuleiro de bem talhada madeira, assentava no quengo protegido por uma encardida rodilha e, espalhando simpatia, saía para o exercício da sua rotineira labuta. Descia a ladeira da Visconde de Saboya, caía pela Praça dos Leões, virava a direita mais à frente, na Governador Sampaio, e abria o seu reclame pelas portas das faustosas casas. Quando chegava na da mirada viuvinha, ele lampejava os olhos e assim propagava: “Ovo e uva boa! É da melhor qualidade!” 

Aí, os guardiões da viúva surgiam nas janelas e Otelino, com um anêmico sorriso, levantava o pano que cobria a mercadoria no tabuleiro, continuava: “Vai querer, freguês?!”.




COMENTÁRIO:

As magnificas croniquetas de Totonho Laprovitera sobre a nossa Fortaleza, a “loura desposada do sol” do poeta Paula Ney, evocam em todos nós da geração "baby boomers" as mais gentis recordações, de quando éramos meninos e a cidade adolescente.

Em peça anterior ele referiu à lanchonete de seu avô e à barbearia em que cortava o cabelo, tão próximas da “merendeira” Miscelânea e do Salão Torres, que eu mesmo frequentava, pela mão do genitor, naquela época. Aliás, tive a oportunidade de levar meu neto para o primeiro corte de cabelos, pelas mãos do Luizinho, hoje falecido, como meu pai fizera comigo.

Quando eu ia deixar a vida de adolescente cabeludo para ingressar em emprego público fui ao salão do Luizinho e pedi que reservasse uma das madeixas, por recomendação da então namorada, que, por nostalgia, a queria ter consigo.

O Luiz, ante o meu pedido, colocou a cabeça entre mim e o espelho, pente e tesoura nas mãos, e disparou: “Pode falar com a sua mãe que ela tem um cacho de cabelos do seu primeiro corte. Ela me pediu um, e guardou num envelopinho”.

Quanto ao expediente do vendedor de uvas e ovos, deu-se comigo parecido. A namorada recente, uma bela tapuia de quem ainda sou cativo, me denunciou um “doceiro” ambulante que vendia picolés, o qual, ao passar em frente à sua casa, na Av. Rui Barbosa, soltava a voz: “Vai moreninha boa!!!”.

Esperei o vendilhão no dia seguinte, num assomo de testosterona, para lhe pedir satisfações pela ousadia. Ele, então, humildemente, abril a tampa do carrinho e me mostrou um picolé, coberto de chocolate, denominado “moreninha”. 

Ainda não era advogado, mas tive de admitir que a tese de defesa era perfeita, e em nome da paz social relevei a sua malícia. E muitas vezes, para esbanjar confiança, da minha casa, que era próxima, paguei-lhe picolés moreninha e mandei que fosse entregar na casa dela.

Reginaldo Vasconcelos  
  

Um comentário:

  1. Ótima a tirada do ambulante, tipicamente cearense e muito bem aproveitada na crônica.

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