quinta-feira, 14 de julho de 2016

CRÔNICA - Cabotinismo (VM)



CABOTINISMO
COMPORTAMENTO ABOMINÁVEL
Vianney Mesquita*


O orgulho que almoça vaidade janta desprezo. (BENJAMIN FRANKLIN, cientista, diplomata, inventor e intelectual eclético do Estados Unidos. 1706-1790).


O nome cabotino, adjetivo e substantivo de ambos os gêneros, significa, em acepção original, mau comediante, ator histrião, personagem bufo, cômico teatralmente desqualificado. Consoante sugere Antônio Geraldo da Cunha, no seu Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (2. ed., Rio de Janeiro, 2001), “parece” aludir ao nome de um ator burlesco de categoria inferior (Cabotin), o qual teria atuado no tempo de Luís XIII, em França.

Figurativamente, entretanto – e esta é a significação preferida e mais conhecida no Brasil – denota a ideia de [...] indivíduo presumido, afetado, que procura chamar a atenção, ostentando qualidades reais ou fictícias (CUNHA, 2001), com registo lexicográfico no século XIX (1807), sendo controversa a origem dos seus sentidos expressos em glossários, segundo gizado no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), de Mauro Salles Villar e Antônio Houaiss.

Este escrito é a continuação de viagem feita na boleia de matéria aqui veiculada recentemente, sob o título de Em qual cabeça assenta este chapéu? onde expressei indignação com os autores autoproclamados mentores da sociedade, os quais se louvam no expediente da apologia aos protagonistas de suas obras, sem desvinculá-los dos nomes reais como escritores, com vistas à obtenção do aplauso, atitude repreensível, mesmo se o louvor restar merecido, e – pior ainda – caso não sobeje o elogio justo.

A desqualificada significação desta unidade de ideia – cabotinismo – experimenta trajeto bastante comum no decurso na sociedade dos mais diversificados lugares e em tempos totais, conforme, amiudemente, a História relata, submetendo ao risco de sua instalação todos aqueles que não se vacinaram contra a picada da mosca azul – consoante a reflexão de Frei Beto, no livro do mesmo nome – expondo-se, dadivosos, ao seu voraz apetite.

A soberba, a importância e a indispensabilidade quase patológicas dos afagos ao ego sugestionado por Sigmund Freud parecem invadir o controle da volição, determinante da vontade de cada qual, neste caso, concernente a orientar as pessoas na trilha certa, conduzindo-as ao comportamento adequado no âmbito moral, na contextura da decência e no contorno das atitudes saudáveis que devem presidir aos nossos procederes. A isto a sociedade inteira almeja, porém, se descuida de armar anteparos e, com frequência, se descortina subordinada a um inimigo oculto, o qual se arrima até na nossa inteligência, como, por exemplo, na capacidade de escrever bons textos, a fim de operar seu desiderato e nos exibir aos pares com defeito de tanta monta, configurado no recurso nefasto do exibicionismo, sinônimo de ostentação, correspondente a encômio barato e presunção despropositada.

É determinante, por conseguinte, um cuidado redobrado, a fim de as pessoas não se subordinarem às investidas constantes do cabotinismo, mormente quando são alçadas a posições de destaque, por via da Política, Religião, manifestações artísticas e demais haveres dotais impressos pela Providência Divina, como, exempli gratia, a Literatura, a Pintura e as outras quatro artes.

Estas expressões da indústria humana, por efetivo, consuetudinariamente, concedem visão pública e midiática aos produtores e intérpretes, granjeando para seus palcos de shows e outros ambientes de assistência, em catarse aristotélica – de cariz estético – uma multidão apaixonada, desorganizada e desprovida de pensamento racional, condutora do artista aos apogeus da glória, circunstância fácil de ligeiramente enviesar para o senhorio da cabotinagem, de atuação ligeira junto aos que não se abasteceram de defesas rápidas contra opositor de exercício tão desembaraçado e veloz.

O complexo inteiro da Humanidade está sujeito aos tentáculos dos comportamentos charlatães, de tal sorte que se deve permanecer em atalaia contínua contra suas arremetidas. Há que se postar avesso, entretanto, aos pruridos exagerados de simplicidade, como, por exemplo, o autor deixar de assinar uma produção, resignar-se perante a omissão de seu nome de uma ficha técnica, calar-se ante a supressão de referência por parte de alguém em evento cuja efetividade dependeu de sua participação etc., fatos que somente atestam a bobice e a sujeição infantil, também doentias, no polo oposto da ideação do teor cabotino.

Guardo, constantemente, sobrado cuidado com as acometidas desse vilão moral, deontológico e ético, para não ser vergado moralmente pelos seus impulsos poderosos (Flexo, sed non frango = envergo, mas não quebro). Ele circula à solta em meio aos desavisados, mormente na ambiência dos inocentes e pretensos credores do reconhecimento e presumidos donos de uma arte maior, definitiva, quando, em muitos lances, representam apenas jejunos e claudicantes aprendizes, visitantes de assuntos sobre os quais estão ainda bastante apartados do domínio.

Estas pessoas merecem de seus próximos – parentes, amigos e circunstantes com quem tenham alguma ligação – os corretivos oportunos, as regulagens apropriadas, a fim de que não habitem o patamar dos deserdados morais artistas, os quais, mesmo sendo bons, ainda acham necessário aparecer, conforme expressei na matéria indicada no terceiro parágrafo desta escrita, como os primeiros entre os pares, feitos luminares refalsados do preparo intelectual e notáveis ilusórios da sabedoria.

Lamentavelmente, não conhecem, ou jamais divisaram, a ideia do cientista de Österreich, naturalizado inglês, Carlos Raimundo Popper (Viena, 28.07.1902 – Kenley, 17.09.1994), para quem todos somos cegos convencidos de que saber e ignorância são vizinhos.







COMENTÁRIO:

Interessante e complexo o tema que Vianney Mesquita traz à baila. A pedra-de-toque entre o autorreferente e o cabotino, entre o consciencioso e o fanfarrão, é a certeza do próprio valor que uns trazem do berço, e a insegurança sobre os próprios méritos que a vida impõe a alguns outros.

É natural querer e esperar o reconhecimento dos circunstantes sobre as nossas reais virtudes, que são inatas e gratuitas – e mais ainda sobre os nossos esforços, que demandam pertinácia e persistência.

Porém, levantar estandartes sobre si, jactar-se, fazer louvaminhas, requerendo aplausos e reverências (merecidos ou não), é algo que não engrandece ninguém, e não raro apequena o que seria realmente valoroso se apenas notado e admirado pelo público, e principalmente pelos doutos.

A não ser com o fim mercantil de vender coisas de sua arte ou de sua indústria a que a fama favoreça, a publicidade é deletéria ao indivíduo, que de regra perde alguns valores íntimos, despertando geralmente no povo uma gelatina reverencial que furta-cor entre amor e ódio, entre admiração e inveja, entre pertencimento e apropriação, criando-se um personagem diverso e estranho à essência da pessoa.

Então, se é de fato prazeroso ser admirado pelos que nos conhecem e que nós conhecemos, se é vantagem real ser respeitado pelos nossos circunstantes, que amamos e que nos interessam, a celebridade mítica, sempre tão desejada e perseguida, pode ser um ônus grave ao contentamento do espírito e aos mais hígidos sentimentos.

Reginaldo Vasconcelos
     

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