Biografia
dos terroristas
sempre
revela vidas de ressentimento
João Pereira Coutinho*
(Enviado por Rui Martinho Rodrigues)
Acontece
um atentado terrorista na Europa, mais um, agora
em Nice, e as perguntas
dos dias seguintes são sempre as mesmas. Por quê? Como explicar o horror? Quais
são as causas? Que fizemos nós para merecer isso? A ambição subjacente é óbvia:
se soubermos as causas podemos evitar os efeitos.
Existem
duas formas de responder a um tal cortejo de ansiedades. O primeiro é denegrir
tais dúvidas, caracterizando os seus autores como ingênuos ou coisa pior. O
terrorismo deseja o terror. E, quando vem embalado por qualquer caução
islamita, deseja a morte dos infiéis. Será assim tão difícil de entender?
Na
verdade, é difícil sim. E aqui está a segunda forma de responder às perguntas:
o nosso pensamento progressista (e racionalista) impede uma compreensão genuína
do horror.
Somos
filhos do Iluminismo. Acreditamos que a razão, corretamente exercida, permite
sempre uma melhoria moral e material da sociedade: a derrota do fanatismo; a
defesa da tolerância; a partilha de um espaço público comum; e etc. etc. Os
atos dos terroristas são "irracionais", dizemos nós, porque não se
ajustam aos nossos critérios de racionalidade.
Essa
"dissonância cognitiva" é inevitável. O Iluminismo teve consequências
positivas na história dos homens: o reforço da separação entre o Estado e a Igreja,
inexistente no Islã, foi um deles.
Também
teve consequências desastrosas: se, como dizia Voltaire, o paraíso é onde
estamos, então nada impede os seres humanos de procurarem esse paraíso na
Terra. Dizer que as consequências dessa busca foram trágicas no século 20 é,
obviamente, um eufemismo.
Só
que o "projeto iluminista", na sua ânsia de defender e aplicar a soberania
da razão humana esqueceu-se de dois viajantes que sempre fizeram parte da
história.
O
primeiro é a "contingência", ou seja, a noção de que não é possível controlar
tudo por mera ação humana. Pior ainda: a noção de que podem existir fatores
imponderáveis que subvertem, ou até destroem, as melhores intenções. Essa
ideia, que era pacífica para nossos antepassados, deixou de o ser com a
arrogância racionalista moderna.
O
segundo viajante se dá pelo nome de "ressentimento". A política das
boas intenções esqueceu-se do "homem ressentido", para usar a
expressão de Max Scheler (1874""1928): o sujeito que procura "lá
fora" a justificação para o seu ódio interior. Como escrevia Edmund Burke
(1729""1797) em crítica direta ao otimismo dos
"philosophes": "O poder dos homens viciosos não é algo de negligente".
Esse poder está à vista: leio a biografia dos terroristas e, sem exceção, encontro
sempre vidas de ressentimento. Podem ser ressentimentos familiares. Econômicos.
Sentimentais. Sexuais. Ou, na era narcisística em que vivemos, um desprezo pelo
exato mundo que não os reconhece na sua importância ou singularidade.
Idealmente,
os homens ressentidos deveriam ter o anonimato que merecem, condenados a tragar
o veneno que produzem para terceiros. Mas os ressentidos profissionais
encontram sempre uma "filosofia do ressentimento" que os redime.
Exatamente como comunistas e nazistas encontraram no passado.
Essa
"filosofia" é também ela um produto do ressentimento: o radicalismo islâmico
propaga uma mensagem de ódio ao Ocidente, não apenas porque o Ocidente e os
seus valores "liberais" (democracia, pluralismo, liberdade individual
etc.) são odiosos, mas porque, na lógica do ressentido, o Ocidente é o culpado por todas
as falhas de um povo, ou de uma cultura, ou de uma civilização. Lênin e Hitler
poderiam tranquilamente subscrever essa visão.
Deixo
as questões securitárias para os especialistas. Mas duas conclusões filosóficas
parecem-me fatais. Para começar, a Europa terá que conviver com a contingência
que tanto se esforçou por ignorar. Por melhores que sejam os sistemas policiais,
nem todo o progresso tecnológico poderá eliminar o horror do imponderável. O
paraíso, definitivamente, não é deste mundo.
Por
último, os inimigos das sociedades livres sempre estiveram dentro delas: falo
dos homens ressentidos que usarão sempre uma desculpa qualquer, o Partido,
a Raça, o Profeta,para cometerem as suas atrocidades.
"Se
soubermos as causas podemos evitar os efeitos?" Lamento. O ressentimento não
funciona assim. A sua vontade de destruição é uma história longa. E será, como
sempre foi, uma luta sem fim.
Escritor português
Doutor em ciência política
Colunista do “Correio da Manhã”,
o maior diário português.
Escreve às terças-feiras na
versãoimpressa, e a cada duas semanas no site.
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