terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

ARTIGO - A Promessa de Democracia Direta (RMR)

A PROMESSA DE
DEMOCRACIA DIRETA
Rui Martinho Rodrigues*


Publiquei, certa vez, artigo sobre participação política. O limite de caracteres para abordagem de assuntos complexos e polêmicos, em tais circunstâncias, é cruel. O texto fica telegráfico e muita coisa deixa de ser explicada. A minha esperança é de que sirva de aperitivo, valendo mais como sugestão para o leitor meditar, em vez de explicação ou esclarecimento.

Sem a ilusão de dizer tudo ou excluir dúvidas, passo a reexaminar alguns pontos tratados no artigo “Participação política”.

Mencionei “esclarecidos”, assim mesmo entre aspas, por identificar-me com a noção de não-saber no campo dos juízos de valor, que é o campo por excelência da política, alinhando-me com Popper e muitos outros na trilha do não-saber iniciado por Sócrates.

Juízos de realidade são questões técnicas. Cargos técnicos são preenchidos por concurso. Cargos políticos, por tratarem de questões valorativas, não são preenchidos por concurso, mas pelo voto ou pela indicação de quem teve voto majoritário, como é o caso da legitimidade derivada dos cargos de livre nomeação e livre exoneração.

Falando em política, estamos tratando de juízos de valor. Não se faz eleição para tomar decisões técnicas. Um engenheiro calcula a resistência do material e a dimensão de uma viga sem perguntar ao povo. É uma decisão técnica, um juízo de realidade. No meu livro de metodologia eu digo que não se faz uma eleição para saber o sexo de um passarinho, mas pode-se resolver pelo voto se é conveniente e oportuno saber o sexo do passarinho. Esta última questão é um juízo de valor. 

Questões valorativas nivelam o intelectual e o apedeuta. Por isso o voto do analfabeto tem o mesmo valor do voto de um erudito. Falar em “esclarecidos” é uma trapaça de filósofos, com a intenção de se autovalorizarem; seguindo a tradição platônica, pretende alcançar o posto de rei filósofo. Governos de intelectuais, historicamente, não são necessariamente, ou mais frequentemente, melhores.

Aludi à inoperância, violência, vulnerabilidade de comissões, conselhos e assembleias em face das claques de intimidação e cooptação, assim como à irracionalidade das multidões.

A conhecida inoperância de colegiados, conselhos e assembleias, quando investidos de função executiva, se explica pela (i) vaidade de seus membros, desejosos de aparecer; (ii) pela competição entre indivíduos e grupos; (iii) pelos temperamentos querelantes; (iv) pela incompreensão de uma parte quanto as propostas de outras partes; (v) pela agressividade de grupos organizados, praticada como tática de conquista de posições; finalmente, (vi) composições com as quais se pretende apaziguar ou conciliar propostas divergentes tendem a assumir formas contraditórias, inviáveis, puramente retóricas. Aquela anedota segundo a qual “um camelo é cavalo desenhado por uma comissão” expressa estas considerações.

Fiz referência às fórmulas políticas tantas vezes fracassadas. A democracia direta foi tentada pela primeira vez entre os gregos. Os outros povos se referiam aos helenos como “aquele povo que se junta numa praça para enganar uns aos outros”. A experiência com democracia direta, entre os gregos, deve ter estimulado o aparecimento da escola filosófica dos sofistas, que propugnava pelo relativismo cognitivo e axiológico. 

Assim, só restava a retórica, a habilidade para convencer, sem a preocupação de encontrar a verdade. Isso porque ninguém vai para uma assembleia com o propósito de ouvir e acatar o melhor argumento. Todos vão para assembleia fazer prevalecer os interesses e paixões individuais ou grupais.

Por isso a assembleia é irracional, é impiedosa, instaura a lógica da guerra. Na lógica da guerra feio é perder. Por isso assembleias constituem o lugar das claques, da intimidação, da cooptação, da mentira, da falsa promessa, da difamação. Depois da Grécia houve tentativas de democracia direta em Florença, sob Jerônimo de Savonarola; houve a tentativa da comuna de Paris, que decepcionou os intelectuais anteriormente entusiastas da dita democracia; houve muitas outras experiências, inclusive nas Revoluções Francesa e Russa. Os tribunais do povo, na Revolução Francesa, foram uma tragédia marcada pela violência, o ódio, o radicalismo, configurando linchamentos chiques, a despeito da denominação de “tribunais do povo”, levando a festival de degolamentos.

A Revolução Russa, propondo o regime soviético, que era para ser o regime dos conselhos, seguindo a palavra de ordem de Lênin “todo poder aos soviets”, acabou instituindo um regime fechado, centralizado, com o processo decisório todo de cima para baixo, conforme Lênin já havia proposto em 1902, no livro “O que fazer?”, completamente contrário a outro livro do mesmo autor, “O Estado e a Revolução”. 

Neste, o cultuado líder revolucionário pregava a República dos soviets, isto é, dos conselhos aos quais se deveria dar todo o poder. Sucede que todo o poder dado aos soviets (conselhos) era todo poder dado ao secretário Geral do Partido, o próprio Lênin, já que este controlava inteiramente os soviets. Aqui temos um exemplo de defesa de poder para conselhos e comissões como uma tática de reivindicar poder, discretamente, para quem controla os soviets. Todas as experiências de democracia direta fracassaram, produziram resultados catastróficos e duraram pouco.

Lembrei o uso frequente de consultas plebiscitárias pelas piores ditaduras. Hitler fez consulta popular sobre denunciar o tratado de Versalles; sobre voltar a militarizar a Renânia; sobre a anexação da Áustria; sobre a anexação dos sudetos e várias outras consultas. Mussolini fez consulta popular sobre a conquista da Abissínia e vários outras consultas fossem elas do tipo plebiscito referendum. Consultas populares são usadas por ditaduras para forjar uma aparência de legitimidade, sem ter que se submeter a um parlamento.

Parlamentos amadurecem ideias, favorecem o exame mais cuidadoso das questões do que os plebiscitos. Consultas podem confundir o eleitor conforme se faça a pergunta. Não é uma receita infalível, mas perguntas podem ser feitas para confundir. No Brasil foi feita uma consulta, há pouco tempo. Perguntou-se ao cidadão se ele era a favor ou contra o “comércio de armas”. Caso a pergunta fosse sobre “o direito do cidadão ter um meio de defesa” o sentido seria outro. A tentativa de manipulação falhou desta vez. O povo notou a manipulação e entre todos os 5.565 municípios do Brasil só dois se deixaram confundir (Jaboatão dos Guararapes, em PE; e Diadema, em SP).

Democracia representativa é moderação, é amadurecimento das ideias. Seus muitos vícios são os vícios da sociedade, pois os parlamentares são recrutados na sociedade. Seus muitos vícios incomodam porque são os vícios da realidade de hoje, que incidem sobre nós. A democracia direta não tem vícios integrando a realidade de hoje, visíveis aos olhos de hoje. Ela não está nos incomodando porque ela só existe no discurso dos intelectuais. Abstração, modelo político imaginário não tem defeitos. É coisa maravilhosa.

Registrei a marginalização do Poder Legislativo como o afã dos arautos da democracia direta. Toda a arenga sobre democracia direta resulta da inconformidade com o comportamento do Legislativo. Ele é péssimo. Mas não existe coisa melhor. Por isso as democracias parlamentares são duradouras, são mais prósperas do que as outras opções.

Denunciei a falácia que pretende apresentar a sociedade civil organizada (leia-se aparelhada) como democracia direta. Apresentar a sociedade civil organizada como expressão mais aperfeiçoada da democracia é uma falácia. A crise de representação que acomete os parlamentos não é menor nos sindicatos, nos conselhos profissionais, nas sociedades de bairro. 

Discutindo isso em sala de aula, fui interpelado por um aluno, ativista da sociedade civil organizada, digo, aparelhada, que dizia ser membro de uma sociedade de um certo bairro. Uma aluna o interrompeu dizendo ter nascido e crescido no citado bairro e nunca sequer ter ouvido falar na tal sociedade. O Pirambu chegou a ter 38 sociedades do bairro. Quem é representado por 38 sociedades não é representado por nenhuma.

Nunca se viu uma prestação de contas de um sindicato, de uma sociedade de bairro. Corrupção não é monopólio das casas legislativas. Falta de representatividade também não. Mas as casas legislativas têm maior renovação. Cerca de 40% é o índice habitual de renovação do parlamento brasileiro. Sindicatos, sociedades de bairros, movimentos sociais não apresentam nenhuma renovação de liderança. Não se ouve falar em denúncia de irregularidades na “sociedade civil organizada” (aparelhada) embora irregularidades ocorram a toda hora. As casas legislativas são mais transparentes, são mais fiscalizadas pela imprensa, mais denunciadas pelos seus próprios membros.

Defendi a ideia de que a organização, em política, tem em si o germe da dominação. A natureza das organizações contém uma certa dose de dominação. Organizações precisam ter unidade. O relativo monolitismo exige algum grau de disciplina.

Membros de organizações precisam se submeter às decisões da entidade a que pertencem. Tais entidades não são internamente democráticas. Assim, os ativistas das tais organizações são dominados por lideranças nem um pouco democráticas. Democrática é a sociedade civil desorganizada.

Argui a lentidão de comissões, assembleias e conselhos, ao lado da incompetência. Lembrei que um cavalo desenhado por uma comissão resulta em um camelo. Disse ainda que é comum que grupos de ativistas paralisem conselhos e comissões com discussões intermináveis; tomando por meio de táticas agressivas o controle destes órgãos, valendo-se de grosserias e agressões e pelas razões relatadas nos itens anteriores.

Acrescento que comissões são também uma tática para adiar uma decisão ou para fugir à responsabilidade de tomar uma iniciativa, diluindo-a por um grupo. Ademais, as comissões e assembleias tendem a se aventurar pelo campo das questões técnicas. Estas, porém, exigem competência.

Expressei a visão segundo a qual o culto à democracia direta resulta de uma mistura de tática de dominação com uma espécie de ópio dos intelectuais e com o gosto por brigas, próprio de certos temperamentos querelantes. Raymond Aron disse que o marxismo era o “ópio dos intelectuais”, parafraseando o próprio Max. Eu digo, parafraseando Aron, que a democracia direta é que é o ópio dos intelectuais, talvez por sentirem-se mais preparados para dominar pela retórica, até quando vendem as ideias mais estapafúrdias.

Tudo isso pode parecer desolador, quando aceitamos a ideia de que a solução para os inconvenientes da democracia parlamentar é a democracia direta. Não precisa ser assim, quando não se aceita a concepção aludida. Quem não acredita em soluções milagrosas ou em solução gerais e definitivas para as desventuras humanas, menos ainda na democracia direta como a tal solução ampla, geral e irrestrita, restauradora de um suposto paraíso perdido nas brumas do passado, na forma de uma comuna primitiva. Os romanos diziam que a natureza não dá saltos. A democracia é aquela do tipo representativo, que corrige os seus erros no varejo e a longo prazo, sem oferecer o paraíso de um solução para todos os males.

As democracias parlamentares, com todos os defeitos, são mais livres e mais prósperas. A alternância no poder favorece à correção de rumo. A competição favorece ao denuncismo que pode expurgar a vida pública alguns inconvenientes. Não se fará uma sociedade melhor com homens virtuosos. Tal não existe. A sociedade corrige seus erros usando a mesquinhez dos homens no interesse público. Quem fazia denuncismo ontem não o fazia por virtude, mas por ambição de Poder ou até por invejar o desfrute da corrupção. Quem hoje é denunciado e profliga o denuncismo, caso seja apeado do poder voltará à prática moralista das denúncias. A ambição mesquinha de poder, a inveja do desfrute, a demagogia, neste caso, são proveitosas à defesa da probidade administrativa.


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