Por Vianney Mesquita*
Jamais consigo
deslembrar das minhas procedências beiradeiras, nelas inserto seu linguajar
específico -- esse idioleto, quase patois, incluso na derradeira flor do
Lácio, mencionada no poema decassilábico lusitano, de Olavo Bilac, Língua
Portuguesa.
Eis que fui
convidado pela Professora Doutora Maria Nobre Damasceno, decerto
inadvertidamente, para servir como batista de O Sagrado Chão da Vida, feito escrevinhador do texto de saída.
Aqui ela
incursiona pela literatura de teor narrativo, após trazer ao ecúmeno leitor
estudioso das Ciências Pedagógicas dos países de código lusitânico diversos
trabalhos de eminente vulto científico, na qualidade de bem recepcionada
autora, docente-pesquisadora dessa grande área do saber ordenado, apreciada na
ambiência acadêmica de todo o Brasil e transposta às raias nacionais.
Bastou a
primeira vista d’olhos pela sua composição, em língua-prosa simples e clara e
justa e agradável, em torneios bem delineados, para que me fossem clareados os
depósitos da minha retenção de fatos recuados, bendita evocação de sucessos
cujo repasse me entorna de nostalgia e feliz saudade de quadros da infância,
adolescência e nova adultícia, influenciadores da pessoa que hoje experimento
ser.
Maria Nobre
Damasceno transmuda-se aqui na Maria Montessori do campo, das famílias na
ambiência rural, de que coincidentemente sou parte, a fim de descrever, com a
exatidão do escritor experimentado, as delícias dessa Mãe-Terra, divisada pelo historiador londrino Arnold Toynbee, as
peripécias e brincadeiras pueris, os tipos humanos e suas idiossincrasias, bem
assim as dificuldades de vida dos seus pais e de sua família.
Em
contrapartida, relata os expedientes penosos e inteligentes como remédios para
os óbices econômico-financeiros e problemas de toda sorte que costumam, ainda
hoje, envolver os habitantes das glebas pastoris, ora liberais e muníficas na
bonança, no entanto ferozes e excessivamente
parcimoniosas nos apuros, como sucede nos tempos de seca e de enchentes.
Malgrado
debulhar o enredo da vida em família no interior do Ceará, o fato de
individualizar a sua não subtrai a oportunidade de os leitores aí se
retratarem. Foi o que sucedeu comigo, porquanto estas constituem ocorrências
próprias da esfera rural nordestina, de sua cultura, e arraigadas nos costumes
peculiares, fiéis à tradição campesina, onde pouco mudou, a despeito das
grandes fulgurações da chamada “Modernidade líquida”, expressão cunhada pelo
sociólogo polaco Zigmunt Bauman. Estas coincidem, exempli gratia, com a rede mundial de computadores, as novas formas
(legítimas ou não) de composição dos contingentes familiares, os hábitos
citadinos e comportamentos supervenientes.
Sob o prisma
taxinômico, porque habituada a proceder a classificações consentâneas nos seus
copiosos ensaios acadêmicos, a crônica de O Sagrado chão da vida – saga de uma família,
se expressa magnificamente coordenado, por exemplo, ferindo o assunto o
capítulo O baú da memória, onde, pro
rata tempore, concede vazão à narrativa, ao nomear paulatinamente seus
diversos segmentos, de sorte a imprimir ordem racional e ensejadora de perfeita
leitura e decodificação apropriada à história, rica em detalhes, porém
deseixada de rodeios e sobejos pormenores.
No concernente à forma, a linguagem se exibe simples, entretanto
correta, respeitosa às regras da Língua, e (não poderia ser diferente) fiel ao
jargão interiorano, harmonizada ao léxico aí falado e escrito, fato denotativo
de que se trata de pessoa habílima no ofício de escrever, mesmo inaugurando
modalidade diversa daquela de seu trato universitário.
Consoante o leitor mais atilado pode alcançar, tomei tenência em
não lhe furtar o hors d’ouvre da narração – refeição principal
– ao desta adiantar detalhes, deixando-lhe ao talante o lance de, por si mesmo,
revelar a estesia da composição e deleitar-se com os sucessos contados.
Muito me contenta levar meus emboras a essa autora de vulto da
literatura pedagógica nacional, agora extraordinariamente entrada nos meandros
da crônica histórico-familiar, quando traz para o clarão das nossas letras este
escrito, conquanto ligeiro, de substancial recheio temático alusivo à vida na
zona rural do Ceará e cuja narração, não obstante o tempo a que se refere, não
perdeu, de jeito algum, sua efetividade.
*Vianney Mesquita
(Docente da UFC, jornalista e escritor.
Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa e da
Academia Cearense de Literatura e Jornalismo).
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