sábado, 7 de dezembro de 2013

CONTO

UMA HISTÓRIA DE AMOR
*Por Rui Martinho Rodrigues

Renata amava Mário, que amava Lia, que amava Mário. Sim, e isso foi antes dos versos famosos. O triângulo assim formado desfez-se quando Mário casou com Lia, uma mocinha muito ingênua e recatada. Renata, moça muito desenvolta e experiente, para os padrões da época, mais conhecida como Renatinha, não se mostrou abalada.

Mário, tenente da Polícia Militar, era um sujeito muito refinado, contrastando com os seus colegas de corporação, entre os quais ainda havia muitos remanescentes dos tempos das volantes, que varavam os sertões, enfrentando cangaceiros. O tenente era um homem da cidade, dado aos livros, com acentuado gosto por literatura, principalmente poesia. Depois de umas doses, recitava sempre alguns versos de Camões e de outros bardos famosos. Também tinha muito gosto por História. Mas sua paixão maior era a bebida.

Na polícia o jovem tenente fez amizade com alguns colegas que também apreciavam o esporte de esvaziar copo. Lia, a jovem esposa, se desesperava com a bebedeira do marido. A mulher do tenente era uma mocinha ingênua e frágil, dominada por angústias. E era o tipo de pessoa que desabafa com todo mundo as tristezas que sente. As suas insatisfações com a prática esportiva do marido, campeão de levantamento de copo, não eram segredo pra ninguém.

Um sargento, da mesma corporação do tenente Mário, chegou a conversar com a jovem senhora sobre o assunto. Era um macumbeiro exímio. Garantiu que faria um “trabalho” e o maridão ia enjoar a bebida. Tinha que ser a meia noite. Tinha que ser a meia noite. Precisava de uma garrafa de cana e outros ingredientes. Dentro da Lia a mocinha ingênua e angustiada topou. Era um tempo em que havia mocinhas ingênuas, jovens senhoras sem malícia.


Uma noite em que o tenente estava como oficial de dia, no quartel, Lia e o sargento rumaram para uma encruzilhada, num subúrbio distante. Depois de muita cachaça o audacioso sargento abusou da mulher do tenente. Ao amanhecer, Lia estava bêbada, com os cabelos desalinhados e a roupa rasgada, meio desorientada, manifestando evidentes sinais de desespero.

O tenente, homem refinado, ao retornar ao lar não encontrou a jovem esposa. As horas passavam e nada de Lia. Lá pelo meio da tarde apareceu a desditosa senhora. Vinha acompanhada de um casal de velhos, moradores do subúrbio, por quem havia sido recolhida. Vestia uma roupa simples, da velhinha suburbana. Quando viu o marido chorou desesperadamente.


Dadas as explicações, Mário, homem de temperamento contido, formal, procedeu metodicamente, conforme o figurino dos tempos da brilhantina. Despachou os velhinhos, depois dos agradecimentos. Vestiu o uniforme e deu uma surra de espada na amada esposa. Depois chamou “um carro de praça”. Foi deixar a chorosa Lia na casa dos sogros. Repudiou a esposa. Dirigiu-se ao quartel e matou o sargento.

Embora o crime tenha sido praticado no interior do quartel, o tenente conseguiu evadir-se. O comandante decretou sua prisão. O oficial encarregado de prendê-lo, um tenente da sua turma na Escola de Polícia, procurou-o:

– “Macho véi”, o coronel mandou eu te prender. Onde é que a gente pode te esconder?

– Não amigo, é melhor acabar logo com isso. Vamos pro quartel. Eu me entrego.

– Não senhor. Vamos falar com o capitão Muniz. Duvido que ele concorde com isso.

O capitão Muniz, companheiro das práticas esportivas dos dois tenentes, muito bem classificado no campeonato de levantamento de copos, decidiu esconder o companheiro no sítio do pai, nos arredores da cidade. Afinal não era possível abandonar um amigo numa hora como aquela. E aquele sargento tinha que morrer, afinal, o atrevido abusou da mulher de um oficial. A coisa esfriou. Mário apresentou-se para não ser considerado desertor. Preso no quartel, passou a receber a visita do antigo amor: a Renatinha.
 
Julgado, Mário foi absolvido. E não foi sob a alegação de defesa da honra. Tendo se dirigido ao quartel, no dia da tragédia, Mário, aos gritos, com a mão na pistola, que permanecia no coldre, interpelou o sargento sobre o acontecido. Sabendo que a interpelação não era para brincadeira, o sargento desembainhou o sabre e avançou para o tenente, na presença de várias testemunhas.

O marido ofendido, por sua vez, saca da pistola e movimenta o ferrolho para engatilhar a arma. A bala “atravessa” na entrada do cano. Era uma “falha de alimentação”, na hora crucial. Não havia outra opção: o bravo tenente correu, com o sargento em seu encalço. Desenganchar uma pistola naquelas circunstâncias não é fácil. Mas o bravo tenente conseguiu, correndo ao redor de uma grande mesa, ou rodando em torno de uma coluna, conforme a versão (nenhuma tragédia tem uma só versão).

O audacioso sargento morreu e deu de presente a legítima defesa para o tenente, cuja honra havia ofendido, no tempo em que tal coisa exigia faxina com um detergente muito especial: sangue humano. Ainda mais se tratando uma personalidade formal, apreciadora de Camões e tudo mais.

Mário saiu da prisão e foi morar com a Renatinha. Não havia divórcio. União consensual era “mancebia”. Mas o casal viveu como se casado fosse, conforme a expressão forense, “more uxório”, isto é, da maneira mais respeitosa possível, durante vinte e tantos anos. Continuou a carreira na PM. Foi até major. Reformou-se como tenente-coronel. Continuou também a carreia esportiva: levantamento de copo. Veio a cirrose. A saúde do velho coronel agravou-se. Subitamente estoura a notícia: o coronel Mário voltou para dona Lia.

Quando o coronel estava morrendo, nos últimos momentos, buscou a paz com dona Renatinha, manifestando o desejo de vê-la, em sucessivos recados. Renatinha, sentindo o peso dos anos como o das mágoas, não atendeu ao pedido. Após o desenlace, Lia, com a cortesia dos casais de novela, mandou convidar Renatinha para a cerimônia fúnebre.

O convite foi rejeitado.

*Rui Martinho Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ

Titular da Cadeira de n°10

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