UMA HISTÓRIA DE AMOR
*Por Rui Martinho
Rodrigues
Renata amava Mário, que amava Lia, que amava Mário. Sim, e
isso foi antes dos versos famosos. O triângulo assim formado desfez-se quando
Mário casou com Lia, uma mocinha muito ingênua e recatada. Renata, moça muito
desenvolta e experiente, para os padrões da época, mais conhecida como
Renatinha, não se mostrou abalada.
Mário, tenente da Polícia Militar, era um
sujeito muito refinado, contrastando com os seus colegas de corporação, entre
os quais ainda havia muitos remanescentes dos tempos das volantes, que varavam
os sertões, enfrentando cangaceiros. O tenente era um homem da cidade, dado aos
livros, com acentuado gosto por literatura, principalmente poesia. Depois de
umas doses, recitava sempre alguns versos de Camões e de outros bardos famosos.
Também tinha muito gosto por História. Mas sua paixão maior era a bebida.
Na polícia o jovem tenente fez amizade com alguns colegas
que também apreciavam o esporte de esvaziar copo. Lia, a jovem esposa, se
desesperava com a bebedeira do marido. A mulher do tenente era uma mocinha
ingênua e frágil, dominada por angústias. E era o tipo de pessoa que desabafa
com todo mundo as tristezas que sente. As suas insatisfações com a prática
esportiva do marido, campeão de levantamento de copo, não eram segredo pra
ninguém.
Um sargento, da mesma corporação do tenente Mário, chegou a
conversar com a jovem senhora sobre o assunto. Era um macumbeiro exímio.
Garantiu que faria um “trabalho” e o maridão ia enjoar a bebida. Tinha que ser
a meia noite. Tinha que ser a meia noite. Precisava de uma garrafa de
cana e outros ingredientes. Dentro da Lia a mocinha ingênua e angustiada topou.
Era um tempo em que havia mocinhas ingênuas, jovens senhoras sem malícia.
Uma noite em que o tenente estava como oficial de dia, no
quartel, Lia e o sargento rumaram para uma encruzilhada, num subúrbio distante.
Depois de muita cachaça o audacioso sargento abusou da mulher do tenente. Ao
amanhecer, Lia estava bêbada, com os cabelos desalinhados e a roupa rasgada, meio
desorientada, manifestando evidentes sinais de desespero.
O tenente, homem refinado, ao retornar ao lar não encontrou
a jovem esposa. As horas passavam e nada de Lia. Lá pelo meio da tarde apareceu
a desditosa senhora. Vinha acompanhada de um casal de velhos, moradores do
subúrbio, por quem havia sido recolhida. Vestia uma roupa simples, da velhinha
suburbana. Quando viu o marido chorou desesperadamente.
Dadas as explicações, Mário, homem de temperamento contido,
formal, procedeu metodicamente, conforme o figurino dos tempos da brilhantina.
Despachou os velhinhos, depois dos agradecimentos. Vestiu o uniforme e deu uma
surra de espada na amada esposa. Depois chamou “um carro de praça”. Foi deixar
a chorosa Lia na casa dos sogros. Repudiou a esposa. Dirigiu-se ao quartel e
matou o sargento.
Embora o crime tenha sido praticado no interior do quartel,
o tenente conseguiu evadir-se. O comandante decretou sua prisão. O oficial
encarregado de prendê-lo, um tenente da sua turma na Escola de Polícia,
procurou-o:
– “Macho véi”, o coronel mandou eu te prender. Onde é que a
gente pode te esconder?
– Não amigo, é melhor acabar logo com isso. Vamos pro
quartel. Eu me entrego.
– Não senhor. Vamos falar com o capitão Muniz. Duvido que
ele concorde com isso.
O capitão Muniz, companheiro das práticas esportivas dos
dois tenentes, muito bem classificado no campeonato de levantamento de copos,
decidiu esconder o companheiro no sítio do pai, nos arredores da cidade. Afinal
não era possível abandonar um amigo numa hora como aquela. E aquele sargento
tinha que morrer, afinal, o atrevido abusou da mulher de um oficial. A coisa
esfriou. Mário apresentou-se para não ser considerado desertor. Preso no
quartel, passou a receber a visita do antigo amor: a Renatinha.
Julgado, Mário foi absolvido. E não foi sob a alegação de
defesa da honra. Tendo se dirigido ao quartel, no dia da tragédia, Mário, aos
gritos, com a mão na pistola, que permanecia no coldre, interpelou o sargento
sobre o acontecido. Sabendo que a interpelação não era para brincadeira, o
sargento desembainhou o sabre e avançou para o tenente, na presença de várias
testemunhas.
O marido ofendido, por sua vez, saca da pistola e movimenta
o ferrolho para engatilhar a arma. A bala “atravessa” na entrada do cano. Era
uma “falha de alimentação”, na hora crucial. Não havia outra opção: o bravo
tenente correu, com o sargento em seu encalço. Desenganchar uma pistola
naquelas circunstâncias não é fácil. Mas o bravo tenente conseguiu, correndo ao
redor de uma grande mesa, ou rodando em torno de uma coluna, conforme a versão
(nenhuma tragédia tem uma só versão).
O audacioso sargento morreu e deu de presente a legítima
defesa para o tenente, cuja honra havia ofendido, no tempo em que tal coisa
exigia faxina com um detergente muito especial: sangue humano. Ainda mais se
tratando uma personalidade formal, apreciadora de Camões e tudo mais.
Mário saiu da prisão e foi morar com a Renatinha. Não havia
divórcio. União consensual era “mancebia”. Mas o casal viveu como se casado
fosse, conforme a expressão forense, “more uxório”, isto é, da maneira mais
respeitosa possível, durante vinte e tantos anos. Continuou a carreira na PM.
Foi até major. Reformou-se como tenente-coronel. Continuou também a carreia
esportiva: levantamento de copo. Veio a cirrose. A saúde do velho coronel
agravou-se. Subitamente estoura a notícia: o coronel Mário voltou para dona
Lia.
Quando o coronel estava morrendo, nos últimos momentos,
buscou a paz com dona Renatinha, manifestando o desejo de vê-la, em sucessivos
recados. Renatinha, sentindo o peso dos anos como o das mágoas, não atendeu ao
pedido. Após o desenlace, Lia, com a cortesia dos casais de novela, mandou
convidar Renatinha para a cerimônia fúnebre.
O convite foi rejeitado.
*Rui Martinho
Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ
Titular da Cadeira de n°10
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