O BANAL E O TRÁGICO
Por Rui Martinho Rodrigues*
Houve
um tempo em que atitudes trágicas eram legitimadas pelo costume. É como se
prevalecesse a crença de que uma desgraça, em determinadas circunstâncias,
devidamente prescritas pela tradição, servia para evitar a vulgarização do mal.
O horror previsível deveria ser um antídoto contra o horror imprevisível,
porque informal, não regulamentado por lei ou pelos usos e banalizado pela
falta de referências. Assim, os costumes eram sagrados. Violá-los exigia muita
discrição. A tragédia espreitava.
Foi
nesse tempo e ambiente que Dona Lícia foi morar ao lado das três Marias. Eram
três irmãs, Maria Vilma, Maria Celestina e Maria Ester, da mais nova para a
mais velha. As três Marias eram filhas de uma senhora viúva, Dona Mariinha. As
únicas casas conjugadas do quarteirão eram as da Dona Lícia e a das três Marias.
Dona Lícia era uma senhora do lar, conforme os costumes da época. Dedicada ao
marido, à casa e – principalmente – aos três filhos. Era uma dona de casa
comum. Maria do Carmo, a filha mais velha, andava aí por volta dos dez ou onze
anos. Caio, o do meio, tinha uns nove ou dez anos. Jairo, o mais novo,
aparentava ter de sete a oito anos.
O
marido de Lícia era caminhoneiro. Ausentava-se frequentemente. O sujeito
aparentava ter maus bofes. Até o nome era estranho: Procênio. As três Marias,
morando na casa ao lado, descobriram assustadas que o Procênio vociferava, de
arma em punho, que arrancaria os olhos de Dona Lícia na ponta da faca se ela o
traísse. Aquilo chocava as moças da casa ao lado.
Um
dia, porém, as irmãs descobriram estarrecidas que Dona Lícia, na ausência do
marido, altas horas da noite, recebia uma visita masculina. As três irmãs eram
muito bem relacionadas com as outras jovens da rua. Comentaram o fato com as
amigas, sob a promessa de guardarem segredo. Afinal, tratava-se de um fato que
bem poderia originar uma tragédia.
Duas outras moças recatadas arranjaram um
pretexto e obtiveram dos pais permissão para dormir na casa das três Marias.
Era preciso que alguém testemunhasse o fato, além das filhas da Dona Mariinha.
Era só para testemunhar, ou para satisfazer a curiosidade das amigas? O fato
deveria permanecer em segredo absoluto.
Aí
pelas nove horas da noite a rua se recolhia. Ainda não havia televisão e as
famílias de bons costumes dormiam e acordavam cedo. O fornecimento de energia
era precário, chegava mesmo a ser intermitente. Mas naquela noite não aconteceu
o que hoje se chamaria “apagão”.
Depois que todos se recolheram apareceu um
homem, usando chapéu de feltro, com a aba abaixada sobre os olhos. As três
irmãs e mais as duas amigas se acotovelavam nas venezianas, tentando reconhecer
o visitante. O homem deu rápidas pancadinhas na porta, que logo se abriu. Ele
entrou.
As
cinco jovens desentenderam-se, a princípio, quanto à identidade do visitante.
Duas delas juravam que era o Seu Farias, morador da mesma rua, na outra quadra.
Resolveram esperar a saída para espantar a dúvida. Demorou, mas o visitante
saiu. Não havia mais dúvidas. Era mesmo o Farias. Todas o conheciam bem.
Ele
trabalhava no armazém de tecidos e costumava atendê-las muito gentilmente. Era inacreditável.
Afinal, Seu Farias era casado com uma mulher muito mais bonita e muito mais
jovem do que Dona Lícia. As mulheres de certa idade são sempre de idade
incerta. Mas Dona Lícia já tinha filha grandinha e não era propriamente
atraente.
As
cinco jovens indignavam-se com o Farias e com a Dona Lícia. Solidarizavam-se,
revoltadas, com a jovem esposa do Farias, tão bonitinho, mas tão pilantra. Era
mesmo um biltre, como se dizia. Sim, isso foi no tempo em que as moças de bons
costumes não usavam expressões como “filho da puta”. Dizia-se biltre, sacripanta
ou algo assemelhado. Até o Seu Procênio, aquele grosso, era agora objeto da
solidariedade das moçoilas pudicas, embora um pouco curiosas...
A
princípio elas só queriam se certificar dos fatos. Agora não podiam permanecer
indiferentes a tanto descaramento. Mas era perigoso. O Seu Procênio vivia
ameaçando arrancar os olhos da mulher na ponta da faca, sem saber de nada.
Imagine se ele sabe de uma coisa dessas. Mas a pobre mulher do Farias não podia
permanecer enganada. E ela não iria provocar nenhuma tragédia. Era uma jovem
mãe que só vivia para o lar. Mas, como fazer? Uma carta anônima resolveu o
problema. A esposa traída, com certeza, não iria provocar tragédia alguma.
Assim
foi feito.
Um
belo dia, logo no começo da tarde, a tranquilidade da rua foi interrompida
pelos gritos de uma mulher:
–
Sem vergonha! Destruidora de lares! Descarada! Deixe meu marido em paz! Vá
cuidar de seus filhos! Respeite o seu marido!
Estas
e outras coisas não muito amenas foram gritadas a plenos pulmões, na porta de Dona
Lícia, por Célia, mulher do Farias, trazendo uma criança nos braços.
A
vizinhança toda saiu de porta a fora, para ver o espetáculo.
O
temível Procênio estava ausente, viajando. Ficou no ar a pergunta: o que irá
acontecer quando o Seu Procênio voltar? Talvez ele nunca saiba, diziam algumas
das jovens curiosas: quem vai falar sobre essas coisas para ele?
Não
demorou muito, desencadeou-se uma tragédia. Mas não por iniciativa de Procênio.
Célia, a esposa enganada, mulher de temperamento nervoso, derramou querosene
nas vestes e ateou fogo. Havia esta prática. Depois passou. As roupas sumária
de hoje não se prestam para isso. E as paixões já não são tão fortes. A
desgraça adquiriu cores ainda mais dramáticas, porque a morte da Célia foi
lenta. Dias e dias no hospital, sofrendo, arrependida, preocupada com o destino
dos filhos, pedindo que não a deixassem morrer.
O
bairro inteiro não falava noutra coisa. O Procênio ia ter que saber disso, não
havia como evitar. Dona Lícia, que não era besta, juntou os filhos e foi para a
casa do pai, a algumas quadras de distância. Procênio chegou. Não encontrou a
mulher. Fez-se o maior suspense. O maridão foi à casa do sogro, Seu Lineo
Monteiro.
Nenhuma notícia chegava. Todo o bairro estava com a respiração
suspensa. Afinal chegou a informação. Procênio alugara uma casa, não distante
dali, para consolar Dona Lícia, muito abalada com os acontecimentos. Também
comprou mobília nova para a dedicada esposa. Nada de facas ou olhos arrancados.
*Rui Martinho Rodrigues Professor e Advogado Presidente da ACLJ Titular de sua Cadeira de nº 10 |
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