quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

CONTO

O BANAL E O TRÁGICO
Por Rui Martinho Rodrigues*
  
Houve um tempo em que atitudes trágicas eram legitimadas pelo costume. É como se prevalecesse a crença de que uma desgraça, em determinadas circunstâncias, devidamente prescritas pela tradição, servia para evitar a vulgarização do mal. 
O horror previsível deveria ser um antídoto contra o horror imprevisível, porque informal, não regulamentado por lei ou pelos usos e banalizado pela falta de referências. Assim, os costumes eram sagrados. Violá-los exigia muita discrição. A tragédia espreitava.
Foi nesse tempo e ambiente que Dona Lícia foi morar ao lado das três Marias. Eram três irmãs, Maria Vilma, Maria Celestina e Maria Ester, da mais nova para a mais velha. As três Marias eram filhas de uma senhora viúva, Dona Mariinha. As únicas casas conjugadas do quarteirão eram as da Dona Lícia e a das três Marias. 
Dona Lícia era uma senhora do lar, conforme os costumes da época. Dedicada ao marido, à casa e – principalmente – aos três filhos. Era uma dona de casa comum. Maria do Carmo, a filha mais velha, andava aí por volta dos dez ou onze anos. Caio, o do meio, tinha uns nove ou dez anos. Jairo, o mais novo, aparentava ter de sete a oito anos.
O marido de Lícia era caminhoneiro. Ausentava-se frequentemente. O sujeito aparentava ter maus bofes. Até o nome era estranho: Procênio. As três Marias, morando na casa ao lado, descobriram assustadas que o Procênio vociferava, de arma em punho, que arrancaria os olhos de Dona Lícia na ponta da faca se ela o traísse. Aquilo chocava as moças da casa ao lado.
Um dia, porém, as irmãs descobriram estarrecidas que Dona Lícia, na ausência do marido, altas horas da noite, recebia uma visita masculina. As três irmãs eram muito bem relacionadas com as outras jovens da rua. Comentaram o fato com as amigas, sob a promessa de guardarem segredo. Afinal, tratava-se de um fato que bem poderia originar uma tragédia. 
Duas outras moças recatadas arranjaram um pretexto e obtiveram dos pais permissão para dormir na casa das três Marias. Era preciso que alguém testemunhasse o fato, além das filhas da Dona Mariinha. Era só para testemunhar, ou para satisfazer a curiosidade das amigas? O fato deveria permanecer em segredo absoluto.
Aí pelas nove horas da noite a rua se recolhia. Ainda não havia televisão e as famílias de bons costumes dormiam e acordavam cedo. O fornecimento de energia era precário, chegava mesmo a ser intermitente. Mas naquela noite não aconteceu o que hoje se chamaria “apagão”. 
Depois que todos se recolheram apareceu um homem, usando chapéu de feltro, com a aba abaixada sobre os olhos. As três irmãs e mais as duas amigas se acotovelavam nas venezianas, tentando reconhecer o visitante. O homem deu rápidas pancadinhas na porta, que logo se abriu. Ele entrou.
As cinco jovens desentenderam-se, a princípio, quanto à identidade do visitante. Duas delas juravam que era o Seu Farias, morador da mesma rua, na outra quadra. Resolveram esperar a saída para espantar a dúvida. Demorou, mas o visitante saiu. Não havia mais dúvidas. Era mesmo o Farias. Todas o conheciam bem. 
Ele trabalhava no armazém de tecidos e costumava atendê-las muito gentilmente. Era inacreditável. Afinal, Seu Farias era casado com uma mulher muito mais bonita e muito mais jovem do que Dona Lícia. As mulheres de certa idade são sempre de idade incerta. Mas Dona Lícia já tinha filha grandinha e não era propriamente atraente.
As cinco jovens indignavam-se com o Farias e com a Dona Lícia. Solidarizavam-se, revoltadas, com a jovem esposa do Farias, tão bonitinho, mas tão pilantra. Era mesmo um biltre, como se dizia. Sim, isso foi no tempo em que as moças de bons costumes não usavam expressões como “filho da puta”. Dizia-se biltre, sacripanta ou algo assemelhado. Até o Seu Procênio, aquele grosso, era agora objeto da solidariedade das moçoilas pudicas, embora um pouco curiosas...
A princípio elas só queriam se certificar dos fatos. Agora não podiam permanecer indiferentes a tanto descaramento. Mas era perigoso. O Seu Procênio vivia ameaçando arrancar os olhos da mulher na ponta da faca, sem saber de nada. Imagine se ele sabe de uma coisa dessas. Mas a pobre mulher do Farias não podia permanecer enganada. E ela não iria provocar nenhuma tragédia. Era uma jovem mãe que só vivia para o lar. Mas, como fazer? Uma carta anônima resolveu o problema. A esposa traída, com certeza, não iria provocar tragédia alguma.
Assim foi feito.
Um belo dia, logo no começo da tarde, a tranquilidade da rua foi interrompida pelos gritos de uma mulher:
– Sem vergonha! Destruidora de lares! Descarada! Deixe meu marido em paz! Vá cuidar de seus filhos! Respeite o seu marido!
Estas e outras coisas não muito amenas foram gritadas a plenos pulmões, na porta de Dona Lícia, por Célia, mulher do Farias, trazendo uma criança nos braços.
A vizinhança toda saiu de porta a fora, para ver o espetáculo.
O temível Procênio estava ausente, viajando. Ficou no ar a pergunta: o que irá acontecer quando o Seu Procênio voltar? Talvez ele nunca saiba, diziam algumas das jovens curiosas: quem vai falar sobre essas coisas para ele?
Não demorou muito, desencadeou-se uma tragédia. Mas não por iniciativa de Procênio. Célia, a esposa enganada, mulher de temperamento nervoso, derramou querosene nas vestes e ateou fogo. Havia esta prática. Depois passou. As roupas sumária de hoje não se prestam para isso. E as paixões já não são tão fortes. A desgraça adquiriu cores ainda mais dramáticas, porque a morte da Célia foi lenta. Dias e dias no hospital, sofrendo, arrependida, preocupada com o destino dos filhos, pedindo que não a deixassem morrer.

O bairro inteiro não falava noutra coisa. O Procênio ia ter que saber disso, não havia como evitar. Dona Lícia, que não era besta, juntou os filhos e foi para a casa do pai, a algumas quadras de distância. Procênio chegou. Não encontrou a mulher. Fez-se o maior suspense. O maridão foi à casa do sogro, Seu Lineo Monteiro. 
Nenhuma notícia chegava. Todo o bairro estava com a respiração suspensa. Afinal chegou a informação. Procênio alugara uma casa, não distante dali, para consolar Dona Lícia, muito abalada com os acontecimentos. Também comprou mobília nova para a dedicada esposa. Nada de facas ou olhos arrancados.
*Rui Martinho Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10




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