quinta-feira, 23 de abril de 2020

ARTIGO - Sonhos e Pesadelos (RMR)


SONHOS E PESADELOS
Rui Martinho Rodrigues*



A grande peste poderá destruir a economia e a organização social. Mortandade, desemprego, fome, violência e perda de liberdade para o controle de riscos biológicos, criminalidade crescente e terrorismo – consequências do desastre – como nos exemplos históricos de falência do Leviatã e da ordem estabelecida. Novos meios de controle social, maiores do que os da obra de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950), “1984”, proporcionados pelas novas tecnologias forma o cenário de pesadelo. Mas também é um sonho.

A fênix ressurgida das cinzas seria uma sociedade justa, igualitária, livre. Eric John Ernest Hobsbawm (1917 – 2012) disse que a ditadura de Joseph Vissarionovich Stalin (1878 – 1953) (ou do PCURSS?) produziu um saldo positivo. Não perdeu prestígio por isso. A Revolução Francesa, com a “fraternidade” da guilhotina, é mais simpática do que a Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra, que também afastou o absolutismo. A declaração dos direitos fundamentais, dos constituintes americanos, não encanta como a dos franceses. Não tem a guilhotina e os milhares de mortos assinalados por José Guilherme Merquior (1941 – 1991).

A tradição libertária lutava contra as péssimas condições materiais de vida, a pauperização das massas (Teoria da Pauperização, Karl Heirinch Marx, 1818 – 1883). As condições dos primeiros tempos da Revolução Industrial, “evidenciavam” isso. A emigração para a cidade sugere, porém, que no campo a vida era pior do que sob a exploração da fábrica. Lawrence W. Reed (1953 – vivo) lembra: antes da Revolução Industrial a maioria das crianças não passava dos cinco anos. Significativamente não houve retorno para o campo.

Fernand Braudel (1902 – 1985) identificou três ritmos do tempo histórico: curta, média e longa duração. O último indica continuidades indiferentes às mudanças. Supor uma sociedade inteiramente nova é negar a longa duração. A atualidade dos dramas da literatura grega multimilenar é sugestiva da existência de uma porção aistórica na condição humana.

Filósofos contemporâneos não focam na pauperização. Evitam o desmentido dos indicadores de mortalidade infantil, esperança de vida, anos médios de escolaridade e número de itens de conforto por habitantes. Denunciam o consumismo. Não posso comprar? Opressão. Posso comprar? Opressão. Trabalho para o patrão? Opressão. Sou o meu patrão? Opressão. Sou ao mesmo tempo explorador e explorado, prisioneiro da lógica da competição, eficiência, eficácia, efetividade e resolutividade. Desprezando tudo isso teremos um mundo melhor? Essa é a proposta?

Democracia parlamentar, regime constitucional, igualdade jurídica não afastam a opressão? Não! A menos que faltem. Nem o Estado provedor superou a opressão. Controles impostos para a libertação têm produzido mais opressão. Mas desde que Platão (428/427 – 348/347) sonhou com a igualdade de alguns em tudo (os reis filósofos), a semelhança da “nova classe” de Milovan Djlias (1911 – 1995), o mundo melhor tem sido buscado com perseverança. A desilusão de Platão com “A República”, expressa na obra “As leis”, é ignorada pelos professores.

A crescente proteção dada aos grupos minoritários, vulneráveis e divergentes da normatividade social afasta a opressão? Não! Mas está mudando o debate. A pauperização saiu de pauta, salvo nas crises. Suicídio, depressão, síndrome do pânico ocupam o lugar. 

A falta de referências culturais estáveis, na modernidade líquida (Zigmund Bauman, 1925 – 1917); o solipsismo resultante da fragilização dos laços sociais pessoais, o vazio do hedonismo narcisista (Gilles Lipovetsky 1944 – vivo) e do niilismo da dialética negativa não são analisados entre os fatores ligados aos quadros psiquiátricos aludidos. Uma das raras exceções é o psiquiatra Theodore Dalrymple (Anthony Daniels, 1949 – vivo), que fala da desorientação induzida. Opressão, como posto pelos revolucionários, não seria o mal-estar na civilização, de que falava Sigmund Schlomo Freud (1856 – 1939)?


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